Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

28 de outubro de 2020

«Para eles, Trump é um Messias»

 Excertos de uma entrevista dada pelo sociólogo norte-americano Philip Gorski, Professor na Universidade de Yale, à edição de 11 de outubro de 2020 do Jornal Católico da diocese alemã de Hildesheim, em que se analisa o apoio incondicional dado a Trump pelos evangélicos norte-americanos:

Qual a razão de muitos evangélicos serem apoiantes incondicionais de Trump?

Para eles, o essencial é a proibição do aborto e do casamento entre homossexuais. Até podem criticar a política migrante de Trump, ou não aprovar o comportamento pessoal do Presidente - no fim, tudo isto é secundário. Aqueles dois temas estão acima de quaisquer outros.

Porque consideram eles esses temas tão mais importantes do que outros temas cristãos, como a justiça social, o clima, ou a proteção dos refugiados?

Isso explica-se, em parte, do ponto de vista psicológico. Muitos temas políticos permanecem abstratos para certos conservadores norte-americanos, como impostos, alianças internacionais ou proteção do ambiente. Têm dificuldades em estabelecer uma relação com questões desse tipo. Já no que concerne ao aborto ou ao casamento homossexual, estabelecem, de imediato, uma ligação emocional, porque veem aí uma ameaça aos seus valores familiares tradicionais. O casamento monogâmico e heterossexual é, para eles, muito central - pretendem manter a sociedade limpa de todos os comportamentos que não se coadunem com estes seus valores. Os Republicanos vêm propagando a ameaça a estes valores familiares nos últimos anos, a fim de espetar uma cunha entre os conservadores católicos e o Partido Democrata.

Como se explica que especialmente os evangélicos brancos se sintam ameaçados?

Para eles, os Estados Unidos da América são uma nação branca e cristã, fundada por Protestantes brancos e prósperos. Sentem esta identidade ameaçada pela secularização, pela imigração e pelos não-cristãos. Sentem-se realmente como o grupo mais ameaçado e perseguido dos EUA. E consideram necessitar de um protetor forte e impiedoso, que os defenda a todo o custo.

E esse protetor é Trump?

Exatamente. Muitos acreditam mesmo que Trump é um enviado de Deus, um instrumento de Deus. Trump é, para eles, um Messias. Comparam-no ao rei Ciro do Velho Testamento, que libertou os israelitas do cativeiro babilónico. Muitos evangélicos leva a Bíblia à letra e estabelecem permanentemente paralelos entre a política atual e o Apocalipse. Consideram estar no meio de uma luta entre o Bem e o Mal. Eles, os evangélicos, estão naturalmente do lado do Bem - os seus opositores políticos e culturais corporizam o Mal.

E Trump sustenta essa sua crença?

Sim, Ele vê o mundo tal como eles: divide-o entre amigo e inimigo, Mal e Bem. O seu princípio é olho por olho, dente por dente (…) Ficaria surpreendido se me dissessem que ele, em toda a sua vida, tivesse mais de uma hora de leitura da Bíblia. Mas, como todos os demagogos, ele possui grande capacidade de sentir como o público reage à sua pessoa e de escolher os temas que provocam a reação mais forte.

Quão importante é para os eleitores cristãos a manutenção da democracia?

Não tão importante como se possa pensar. Sobretudo os brancos evangélicos e muitos católicos conservadores vão tomando uma direção cada vez mais autoritária. Eles consideram inclusive a democracia ser um obstáculo que os impede de alcançar os seus fins políticos. Muitos dizem abertamente desejarem uma ditadura.

26 de outubro de 2020

Carta Encíclica "Fratelli Tutti"

 

Alguns pontos que considero interessantes (e importantes), da última Carta Encíclica do papa Francisco, publicada e 03 de outubro passado:

7. Quando estava a redigir esta carta, irrompeu de forma inesperada a pandemia da Covid-19 que deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam a todos. Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade.

11. A história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais.

15. A melhor maneira de dominar e avançar sem entraves é semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante, mesmo disfarçada por detrás da defesa de alguns valores. Usa-se hoje, em muitos países, o mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar. Com várias modalidades, nega-se a outros o direito de existir e pensar e, para isso, recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los. Não se acolhe a sua parte da verdade, os seus valores, e assim a sociedade empobrece-se e acaba reduzida à prepotência do mais forte (…) Neste mesquinho jogo de desqualificações, o debate é manipulado para o manter no estado de controvérsia e contraposição.

18. Partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece a um setor humano digno de viver sem limites.

27. Criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o «meu» mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas «os outros». Reaparece «a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os muros, muros no coração, muros na terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas. E quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes. Porque lhe falta esta alteridade».

74. O facto de crer em Deus e O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus. Uma pessoa de fé pode não ser fiel a tudo o que essa mesma fé exige dela e, no entanto, sentir-se perto de Deus e julgar-se com mais dignidade do que os outros (…) O paradoxo é que, às vezes, quantos dizem que não acreditam podem viver melhor a vontade de Deus do que os crentes.

107. Todo o ser humano tem direito de viver com dignidade e desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito fundamental. Todos o possuem, mesmo quem é pouco eficiente porque nasceu ou cresceu com limitações. De facto, isto não diminui a sua dignidade imensa de pessoa humana, que se baseia, não nas circunstâncias, mas no valor do seu ser. Quando não se salvaguarda este princípio elementar, não há futuro para a fraternidade nem para a sobrevivência da humanidade.

121. Por conseguinte, ninguém pode ser excluído; não importa onde tenha nascido, e menos ainda contam os privilégios que outros possam ter porque nasceram em lugares com maiores possibilidades. Os confins e as fronteiras dos Estados não podem impedir que isto se cumpra. Assim, como é inaceitável que uma pessoa tenha menos direitos pelo simples facto de ser mulher, de igual modo é inaceitável que o local de nascimento ou de residência determine, por si, menores oportunidades de vida digna e de desenvolvimento.

180. Reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar uma amizade social que integre a todos não são meras utopias. Exigem a decisão e a capacidade de encontrar os percursos eficazes, que assegurem a sua real possibilidade. Todo e qualquer esforço nesta linha torna-se um exercício alto da caridade [nesta passagem, a tradução alemã utiliza a expressão “amor ao próximo” - Nächstenliebe - que considero mais apropriada do que “caridade”].

 

A Encíclica completa pode ser lida aqui:

http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html#_ftn2

24 de outubro de 2020

Cartas por um Sonho

Este livro, da escritora espanhola Ángeles Doñate, é agradável de ler, mas eu esperava mais dele, já que parte de uma ideia muito interessante e tem como mote uma frase de Saramago, “jamais uma lágrima manchará um email”, (da qual aliás já li outras versões, mas é esta que a autora cita).

Numa pequena localidade espanhola, Sara, a funcionária dos correios, é informada de que será transferida para Madrid, já que não compensa ter uma estação de correios na sua aldeia, num tempo em que quase ninguém escreve cartas. A mudança causa-lhe muitos transtornos, pois cuida sozinha de três filhos em idade escolar e pensa que tudo será muito mais complicado numa cidade grande, desprovida dos seus amigos e do ambiente familiar que ali se vive. Desabafa com Rosa, a sua vizinha idosa, que fica igualmente muito preocupada. Rosa é viúva, nunca teve filhos e Sara, com as suas crianças, são para ela uma verdadeira família. Tem então uma ideia: iniciar uma corrente de cartas, a fim de mostrar à Central, em Madrid, que, naquela aldeia, ainda se escreve muito. Numa carta anónima, explica o problema de Sara, e pede à destinatária que não quebre a corrente. Mas Rosa não resiste em usar aquela carta para resolver igualmente conflitos interiores. Endereça-a a uma amiga de juventude que deixara a aldeia há sessenta anos para nunca mais voltar. Rosa aproveita para dar livre curso a palavras que guardou durante todo aquele tempo dentro de si. A casa onde a amiga vivera, um pouco afastada da aldeia, e que permanecera vazia, está de novo ocupada, desde alguns dias. E, querendo acreditar que a amiga regressou, Rosa envia para lá a carta.

Este seu gesto dá início a uma corrente com consequências inimagináveis, já que os autores das cartas, sempre anónimos, seguem-lhe o exemplo e aproveitam para dar livre curso a palavras que guardam dentro de si, revelando paixões escondidas e sonhos que ficaram por realizar.

Penso que todo este potencial poderia ter sido mais bem aproveitado. Alguns conflitos são resolvidos em estilo cor-de-rosa, que roça a telenovela. Além disso, não me parece que tal corrente, que resulta numa carta de quatro em quatro dias (mais ou menos) resolvesse qualquer problema.

Por outro lado, o livro tem momentos francamente bons e possui o encanto de, além de uma frase de Saramago lhe dar o mote, começar com o poema de Álvaro de Campos: «Todas as cartas de amor são / Ridículas».

 

Nota: li este livro na tradução alemã Der schönste Grund, Briefe zu schreiben.