Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

11 de maio de 2021

O Padre Costa de Trancoso

 

O autor deste livro, o historiador Santos Costa, teve a amabilidade de mo oferecer e enviar para a Alemanha. Baseia-se numa lenda de Trancoso: o padre Francisco da Costa terá tido 299 filhos de 53 mulheres! Há um processo com estes dados e com sentença de 1487, arquivado na Torre do Tombo. Duvida-se, porém, da sua autenticidade, ou dos dados lá apresentados, pois será difícil um único homem ter tantos filhos de tantas mulheres, nas quais se incluem uma tia do sacerdote, cinco irmãs e a própria mãe.

De qualquer maneira, vale a pena ler. As lendas fazem parte do nosso património cultural. E o autor prova conhecimento da época e usa linguagem apropriada. Para quem se interessa pelos tempos medievais, um livro destes lê-se com prazer e é sempre fonte de inspiração. O meu sentido agradecimento e os meus parabéns a Santos Costa.

O padre em questão teve sentença pesada:

«Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou».

(Torre do Tombo, Armário 5, Maço 7)

No entanto, acabou por obter o perdão de D. João II «por ter contribuído para o povoamento da Beira Alta». Se bem que eu me pergunte quantos filhos terá realmente tido. E, desses, quantos terão sobrevivido à infância, numa época de grande taxa de mortalidade infantil?

Li algures que perdões destes aconteciam. Não esqueçamos que a sociedade era patriarcal, ou seja, as mulheres não eram muito tidas em conta e um crime sexual acabava por atribuir a culpa a elas. Sinceramente, custa-me a acreditar que todas estas relações se teriam dado por mútuo acordo (se não foram tantas como se diz, teriam sido muitas, há sempre um fundo de verdade nas lendas). Ou seja, o padre terá violado muitas dessas mulheres, incluindo a mãe e as irmãs. Terá, no mínimo, manipulado, para que elas se sujeitassem, no que vai dar à mesma coisa. Sabe-se, hoje, que muitos abusos sexuais perpetrados por elementos da Igreja estão intimamente ligados à manipulação espiritual. Os clérigos utilizam a sua superioridade religiosa e (suposta) moral em chantagens e ameaças, a fim de submeterem as suas vítimas. E um padre do século XV não teria o menor prurido em o fazer.

Dito isto, e o autor vai-me desculpar, mas, e não obstante a qualidade da escrita e o ambiente medieval, não me caiu bem a simpatia pelo sacerdote e as suas "fraquezas" (melhor seria dizer psicopatias). Aqui e ali surge alguma censura, mas muito ténue e condescendente, do tipo da usada com crianças que se lambuzaram com algum doce que não deveriam comer. Que se pensasse, no século XV, que ele, coitado, se deixou levar pelo demo, é algo que não se pode mudar e temos de aceitar. Mas, infelizmente, é um tipo de posição que ainda se aceita, hoje em dia. Tive ocasião de o verificar, fazendo uma pequena pesquisa sobre comentários ao livro.

Não posso igualmente deixar de referir palavras transcritas na contra-capa e que terão sido proferidas, ou escritas, por Aquilino Ribeiro:

«Não será Trancoso? (...) O nome é assim patusco. Olhe contaram-me que era de lá o nosso Nostradamus e um padre raro, único, um padre em que pelos vistos encarnou o génio da espécie».

Sem negar o grande talento literário de Aquilino Ribeiro, ele, pelos vistos, esqueceu-se de que também as mulheres faziam parte da sua espécie. E é notório que se estava a marimbar para os métodos de sedução do tal «génio»!

Salvaguardar património cultural português, sim! Mas o padre Costa de Trancoso devia ser um símbolo do abuso de poder de certos clérigos, a fim de cometerem crimes sexuais, em vez de ser apontado como um «génio» digno de admiração e inveja. Enquanto assim for, as feministas têm ainda muito trabalho pela frente.


2 comentários:

  1. Caríssima Cristina

    Apreciei e agradeço-lhe as referências que me faz, apontando esta obra.
    Concordo com tudo o que escreveu, inclusive com aquela espécie de "paternalismo" do escritor com a sua personagem, que corresponde mesmo à criança que se lambuza e é desculpada pelos progenitores.
    Curiosamente - e quem me conhece - sabe que eu não sou machista e respeito a Mulher como parte igualitária, porque não é inferior, em nada, ao Homem. No livro coloco um judeu a dizer precisamente isso (pág. 35), utilizando a leitura do Talmud - "a mulher foi feita da costela do homem, não dos pés para ser pisada, nem da cabeça para ser superior, mas sim do lado para ser igual; foi feita da parte de baixo do braço para ser protegida e do lado do coração para ser amada".
    O padre não passa de uma lenda, com evidente exagero, trazida por Pinho Leal no seu "Portugal Antigo e Moderno", com base (como ele alega na obra) na leitura de um "jornal pouco católico".
    Transformei um pecador e predador em cordeiro e quase o deixei morrer como santo, é verdade. Cheguei a ter pena dele e delas, porque se sabe que estas paternidades eram fruto de um ascendente masculino na sociedade de então (e de hoje, porventura).
    Talvez o livro, nestes exageros lendários, possa colocar uma discussão sempre útil no que tange à errada etiqueta da mulher objecto, dependente, sofredora, a mando do "patrão" com quem contraiu matrimónio. E no aproveitamento que fazem alguns párocos, chefes, comandos e mais, no aproveitamento da posição para assediar a mulher que, em determinado momento de fragilidade, acaba por ceder.
    Ainda hoje, no jornal, li o caso de um marido que sujeitou a mulher a uma série de sevícias ao longo de 27 anos! Como é possível isto, Cristina? 27 anos! E como é que uma mulher se sujeita a agressões físicas e morais, incluindo ter sido posta na rua, nua, na própria noite de núpcias?
    Ainda há arestas a limar nesta igualdade que se pretende e que vem, paulatinamente, a ser nivelada a partir do último quartel do séc. XIX.
    O homem tem que agir e ser racional, porque para existir teve de ser gerado no ventre de uma mulher, que o trouxe à vida; e que deverá pensar que eventualmente será pai de outra mulher, que quererá ver respeitada.
    Lá chegaremos, Cristina. Creia que estou nesse combate.

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  2. Caríssimo Santos Costa,
    confesso que foi um pouco difícil para mim escrever sobre este livro. Em primeiro lugar, porque, do ponto de vista da escrita, é muito bom. Está muito bem enquadrado na época e fica, para mim, como livro de referência, quando me aventuro também por tempos medievais.

    Por outro lado, há esse aspeto, ainda tão entranhado em nós (sim, em mim também, embora tenha feito esforço, nos últimos tempos, para me livrar dele) de ver apenas a perspetiva masculina. Quando se fala de um homem que teve casos e filhos com muitas mulheres, achamos piada e esquecemo-nos de nos perguntar se todas essas mulheres o fizeram de livre vontade. Penso que a resposta é não. Não há nenhum homem que consiga apaixonar mais do que, digamos, meia dúzia de mulheres (e acho que até já estou a ser generosa). Penso que ocntrário também se aplica, ou seja, uma mulher também não consegue apaixonar dezenas de homens (isto, tirando ídolos como cantores/cantoras, atores/atrizes, etc., pois trata-se de outro fenómeno). Mesmo as lendas de D. Juan e Casanova devem ter muito que se lhe diga (nunca investiguei esses casos). Porque tanta conquista só pode ser feita à base de manipulação e/ou violência. Não há volta a dar, acredite!

    As meninas, ainda hoje, são educadas para agradar aos homens, para serem simpáticas, para não os molestarem com os seus problemas ou assuntos que eles considerem sem importância, para não serem agressivas, para não os desiludirem, para se desunharem no dia-a-dia com trabalho, casa e filhos sempre com um sorriso na boca, etc., etc. Todos estes princípios estão muito entranhados em nós mulheres e acredite que é difcílimo conseguirmos livrarmo-nos deles, dificílimo reconhecermos que eles nos prejudicam mais do que beneficiam. Talvez esta seja uma resposta ao caso que refere, da mulher que aguentou violência durante 27 anos. As razões são múltiplas - porque é sempre difícil acabar com um casamento, por exemplo. Sim, uma mulher ainda é mal vista, principalmente, pela própria família, se for dela a iniciativa de pedir o divórcio; a família acha sempre que ela deve ter paciência, é o teu marido, tens de tentar amansá-lo, etc., etc. O absurdo nisto tudo é que, se uma mulher deixar um homem violento, família e amigos ainda a vão culpar por ela o deixar sozinho, sem ninguém que lhe faça a comida, lhe lave a roupa... enfim. Se houver filhos, a situação ainda é pior. Também se tem de contar com o facto, muito subestimado, de que a mulher tem vergonha de confessar ser vítima de violência! E há a questão de ela acreditar que tudo vai melhorar, ou porque o marido violento lhe promete (homens desses estão constantemente a prometer emendar-se), ou porque ela própria acha que vai conseguir modificá-lo. Também há a dependência financeira, por exemplo. Há muitos, muitos motivos que levam uma mulher a aguentar violência durante décadas.

    Enfim, é um assunto que dá pano para mangas. Por acaso, dei hoje com um artigo interessante aqui, um artigo curto, que está longe de explicar esta problemática, mas dá algumas pistas:

    https://visao.sapo.pt/atualidade/sociedade/2021-05-09-mulheres-seniores-contam-como-viveram-toda-uma-vida-de-violencia-domestica/

    A lenda do Padre Costa pode ser útil, precisamente se passarmos à perspetiva das mulheres e tomarmos consciência de quão patriarcal é a nossa sociedade.

    P.S. Não quero, com tudo isto, dizer que todos os homens são maus e todas as mulheres são boas. Apenas chamar à atenção para os malefícios do sistema patriarcal. Sim, também há mulheres manipuladoras, mentirosas, intriguistas, etc., como há homens bons, com grande sentido de justiça e de ética. Graças a Deus! ;-)

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