Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

15 de maio de 2021

O solidéu do papa

A 15 de maio de 1982, depois de ter visitado o Santuário de Nossa Senhora do Sameiro, em Braga, o papa João Paulo II viajou de helicóptero até ao Porto, onde presidiu a uma missa celebrada junto à Câmara Municipal, na Avenida dos Aliados.

Esta é a versão oficial. Na verdade, o helicóptero que transportava Sua Santidade não aterrou no Porto. Aterrou em Vila Nova de Gaia. Mais precisamente, no Quartel do Regimento de Artilharia Nº 5 do Exército Português, a cerca de duzentos metros do apartamento onde eu morava com os meus pais e o meu irmão.

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Imagem Open House Porto

É conhecida a imagem da igreja e do antigo mosteiro (hoje quartel) da Serra do Pilar, no alto do morro sobranceiro ao rio Douro, de onde se tem uma das melhores vistas sobre a ponte de D. Luís, a cidade velha do Porto e a Ribeira (porto medieval). À altura da visita de João Paulo II, o lanço do muro do Regimento de Artilharia Nº 5 que dá para a Rampa do Infante Santo estava ainda pintalgado de vários círculos vermelhos, assinalando as marcas das balas disparadas a mando do brigadeiro Pires Veloso, em Outubro de 1975, contra os SUV, que controlavam o RASP (abreviatura pela qual era conhecido o Quartel da Serra do Pilar, nessa altura). Durante horas, ouvimos, de nossa casa, as descargas de G3 e da restante artilharia pesada. Mas isto será assunto para outro postal.

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Entrada do Quartel da Serra do Pilar, na Rua Rodrigues de Freitas, © 2011 Horst Neumann

A 15 de maio de 1982, as euforias não eram revolucionárias. Depois de ter aterrado no Quartel da Serra do Pilar, João Paulo II transferiu-se para um descapotável. Desceu a Rua Rodrigues de Freitas e, chegado à Avenida da República, virou à direita, em direção à ponte D. Luís. Por trás das grades de segurança, milhares de pessoas ladeavam o lanço final da avenida que conduz à ponte. Eu fazia parte dessa turba, juntamente com duas amigas. Tínhamos entre dezasseis e dezassete anos.

João Paulo surgiu, finalmente, a acenar à multidão. Quando passou por nós, algo insólito aconteceu: o solidéu voou-lhe da cabeça e aterrou no meio da avenida. Fiquei especada a olhar para o adereço papal, nem sequer me estiquei para seguir o carro até ele desaparecer de vista. Passada a comitiva, lá jazia o solidéu, ninguém lhe parecia ligar. E atingiu-me uma grande vontade de o ir buscar, esgueirando-me por entre as grades. Mas hesitei, as forças policiais vigiavam a multidão que começava a dispersar.

Custava-me, porém, sair dali sem me apossar da relíquia (e mal sabia eu que João Paulo II seria canonizado vinte e três anos mais tarde). Informei as duas amigas das minhas intenções, em busca de solidariedade. Sempre era diferente irmos as três buscar o solidéu, do que uma sozinha. Mas elas alegaram que seríamos admoestadas pela polícia. Repliquei que nenhum dos polícias parecia reparar na peça caída no meio da rua, encontravam-se de costas para ela, concentrados na multidão. Mas as duas mantiveram-se firmes. Se alguém tentasse passar as barreiras de segurança, eles com certeza atuariam.

Fiquei numa hesitação entre o ir e não ir. E o receio, aliado à falta de apoio, acabou por vencer.

Não nego que tivesse sido a melhor decisão. Mas ainda hoje encaro a possibilidade de ter sido bem sucedida, pelo que estaria na posse de uma verdadeira relíquia.

Quem terá ficado com o precioso objecto? Terá sido devolvido ao papa?

Uma coisa é certa: até sairmos dali, o solidéu permaneceu caído no meio da avenida.

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Solidéu papal - imagem Wikipedia

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