Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

17 de agosto de 2012

Uma Mentira Mil Vezes Repetida


Um homem não se quer dar ao trabalho de escrever um livro e espera alcançar a fama com um que não existe. Finge ler, nos transportes públicos do Porto, uma obra-prima da literatura (desconhecida, por só haver um exemplar), escrita por um escritor húngaro fugido aos nazis (que também não existe). Quando a curiosidade sobre o livro for tão grande, que o convidem para entrevistas, passará a ser famoso.

É uma ideia genial, já que todos os escritores são fingidores e a celebridade de muitos livros pouco tem a ver com o seu conteúdo. Mas o enredo é apenas isso. Por outro lado, é admirável que Manuel Jorge Marmelo consiga escrever cerca de duzentas páginas à volta desta ideia, criando, no fundo, enredos complicados, não para o seu romance, mas para o livro e o seu autor (que não existem), enredos, por vezes, sem nexo, o que também não é importante, pois trata-se de mentiras que a personagem principal conta aos utentes dos transportes públicos que se interessam pelo calhamaço que ele finge ler.

Baralhados? Talvez a coisa melhore se lerem o livro.

Não obstante uma escrita de qualidade, Uma Mentira Mil Vezes Repetida tem, a meu ver, dois pontos fracos. O primeiro é que essa ideia de ter o único exemplar de um livro de um escritor genial, mas desconhecido, que escreveu aquele único livro, cheira-me um pouco ao cemitério dos livros esquecidos de uma outra obra, amada por uns e odiada por outros. O segundo é o final abrupto e pouco original.

Mas as divagações de Manuel Jorge Marmelo sobre os livros e os escritores são excelentes. Por isso, depois dos excertos que publiquei aqui e aqui, lá vai mais um:

É provável que, desde que começou a contar histórias, há vários milénios, a humanidade já tenha disposto de tempo suficiente para inventar todas as variações que esta arte possa admitir. Se não as conhecemos a todas e presumimos, por isso, de alguma originalidade, devemo-lo apenas à ignorância ou, vá lá, à impossibilidade de conhecer tudo o quanto se fez antes em cada uma das culturas do mundo. Trata-se, pois, de uma estupidez virtuosa: em vez de ficarem paralisados pela certeza de que não serão capazes de criar algo melhor do que aquilo que já foi feito antes, ou de conceber algo realmente novo, os escritores de cada geração partem de um conhecimento muito limitado da realidade e admitem a possibilidade, tonta, de lhe acrescentar alguma coisa. E tanto persistem que, às vezes, por força de uma experiência pessoal única, ou de um talento inato extraordinário, conseguem efectivamente criar uma história aparentemente nova, ou uma forma diferente de contar um enredo afinal tão velho quanto o mundo.



3 comentários:

Imperatriz Sissi disse...

É estranho. Mas parece funcionar...no entanto, já acho tão complicado promover um livro que existe, que criar uma reputação para um a fingir me parece uma tarefa impossível. Em Portugal, ainda por cima.

Cristina Torrão disse...

Sim, haveria muitos contras à concretização deste plano, logo à cabeça, o facto de os autocarros do Porto andarem sempre tão cheios, que seria praticamente impossível encontrar pessoas que se interessassem por um livro que alguém lesse (se o conseguisse ler). Enfim, talvez dependa da hora a que se utilizam os transportes...
De qualquer maneira, a ideia é interessante e uma boa alegoria ao facto de , por vezes, o conteúdo de um livro ser o que menos interessa.

Tiago R Cardoso disse...

gostei.