O coração inquieto é a raiz da peregrinação. No ser humano vive uma saudade que o força para além da rotina do quotidiano e da estreiteza do seu ambiente habitual.
Ao deparar com esta frase de Santo Agostinho de Hippo, ou Hipona, lembrei-me de uma cena da "Viagem", de Tiago R Cardoso:
“- Raios, quem me estará ligar a esta hora?”
Aquele toque de telefone e dada a hora, tinha-lhe parecido um grito nos ouvidos. Quase sem abrir os olhos tacteou a mesinha de cabeceira em busca do culpado de tanto barulho.
“- Estou…”, disse arrastando a voz, era uma forma de transmitir desde logo o incomodo do telefonema.
“- Desculpa lá jovem….”
“- És tu, que se passa? É grave?”
“- Não pá, apenas para te dizer que vou embora.”
Aquilo serviu de mola para ele se levantar, achou que não tinha ouvido bem.
“- Repete, vais embora?”
“- Sim jovem…”, o interlocutor fez uma pausa como que a ganhar fôlego, “Acordei há pouco tempo e quando me olhei no espelho não me reconheci…”, fez-se silencio.
“- Essa não percebi.”
“- Sabes, olhei no espelho e ali estava alguém que não me dizia nada, era eu mas não era eu.”
“- Lá estás tu, outra vez?”
“- Desta vez fui mais longe, peguei de seguida num papel e tentei escrever coisas relevantes que eu tenha feito, não enchi sequer meia folha. Resumindo, consegui escrever a minha vida numa assentada.
Nasci, andei na escola, arranjei um trabalho, depois outro, vivo o dia a dia como toda a gente, quer dizer, vivo é uma questão de opinião.
“- É pá, então não exageres”, tentou aliviar a conversa.
“-Estou deslocado de tudo, não me enquadro em nada, sinto-me incompleto, mesmo as coisas que gostaria de fazer não as consigo fazer. Acho que chegou a altura de procurar o meu “Eu”, por isso vou embora.”
“- Estás mas é deprimido”, arrependeu-se de seguida mas nem teve tempo de compor a frase.
“- Não estou deprimido, sinto-me apenas incompleto, a vida tem de ser mais do que isto, mais do que trabalhar e sonhar com um dia melhor, a vida é para ser vivida e não um mar de sonhos adiados.”
“- Então que vais fazer?”, perguntou já compreendendo a situação, naquele momento ele também estava no mesmo barco.
“- Sei lá, vou viajar, procurar algo novo, sei lá… arriscar ler um Saramago, escrever, fotografar, sei lá… conhecer algo diferente da rotina que tenho.”,
“- Se queres saber? Fazes bem!”, avançou já com o assunto totalmente encaixado, “E não te esqueças de ir dando noticias.”
“- Evidentemente que sim, até um dia."
O João fez a sua peregrinação e felizmente encontrou o sossego que tanto desejava. Viajou para além dos sonhos que tinha e resolveu viver. Infelizmente nos dias de hoje sobrevivemos num mundo onde os nossos sonhos são trucidados pelas rotinas do dia a dia.
ResponderEliminarNo fundo, estou como Agostinho da Silva, defendo que o homem só deve trabalhar o básico e dedicar o resto do tempo a criar, pintar, escrever, a realizar algo que o preencha.
Utopias.
o Tiago até que tinha umas ideias.
ResponderEliminarSim, Tiago, por vezes é difícil arranjar tempo para dar azo à nossa criatividade, no meio das obrigações do dia-a-dia.
ResponderEliminarMas será mesmo utopia?
Não percamos a esperança, nunca se sabe as voltas que a vida dá...
Tinha sim, Daniel. Ou tem ;)
Quando algém perguntou ao Prof. Agostinho da Silva, quais eram para ele, os enígmas fundamentais, respondeu:
ResponderEliminar-Eu acho que o enígma fundamental é a vida e que depois tudo o resto são apenas enígmas que fazem parte desse grande enígma. Que vida é que nós vivemos, por exemplo? Porque é que vivemos? Que trazemos para a vida? Viemos de outra vida ou não? Vamos para outra vida ou não? Esta vida é relâmpago no céu de vidas ou não? Ou é apenas a única e nunca mais se vive? Nunca se viveu para trás? E depois, na própria vida, cada acto é um enígma. Cada acto dela é sempre uma pergunta.
E ainda temos coisas mais complicadas do que isso, que é a que é que nós chamamos vida.
É verdade...! A que é que cada um de nós chama vida?!
;)
É bem verdade que, muitas vezes, gastamos o nosso tempo com coisas supérfluas e esquecemos a vida, simplesmente.
ResponderEliminarTemos saudades desse Tiago. Este texto está particularmente bem conseguido, com intensidade e ritmo. Em momento algum tropeçamos numa palavra mal escolhida, tudo encaixa na perfeição.
ResponderEliminarPena que o Tiago seja casmurro.