Muralhas de Santarém |
A notícia da chegada dos cruzados ao Porto terá apanhado D. Afonso Henriques ainda na região de Santarém, onde se quedava a solidificar o seu poder. O acontecimento causou grande euforia no reino, o que terá contribuído para que certos barões do norte, ofendidos por não terem participado na operação de Santarém, esquecessem as suas divergências com o monarca, pois todos eles participaram no cerco de Lisboa.
A notícia da conquista de Santarém espalhou-se rapidamente e, como Lourenço e Gonçalo tinham previsto, chegavam-lhes rumores do descontentamento dos barões do norte. Principalmente o alferes-mor Mendo de Bragança e o seu pai Fernando Mendes, o cunhado colérico de Afonso, estavam indignados.
Mas eis que, a 16 de Junho, se deu um acontecimento que provocou uma reviravolta e uma euforia nunca vista em todo o reino: uma armada de cruzados, duzentas galés, com cerca de quinze mil homens, atracou no Porto. E inúmeros portugueses prontificavam-se a participar no cerco a Lisboa.
Afonso mandou o Sousão às terras do norte, reunir os homens e convencer um ou outro barão mais renitente. Em direcção à cidade do Porto, com uma missiva dirigida ao bispo D. Pedro de Pitões, partiu Soeiro Viegas, o meio-irmão de Lourenço, filho do segundo casamento do falecido Egas Moniz.
D. Afonso Henriques não esteve no Porto, foi o bispo daquela cidade que ficou encarregado de convencer os estrangeiros a, pelo menos, fazerem uma paragem na foz do Tejo. Em A Cruz de Esmeraldas, apresento o discurso do bispo sob a perspectiva dos cruzados, pois um alemão de nome Konrad, originário da cidade de Colónia, é uma das personagens principais. Junto com o irmão Johann, de dezasseis anos, que possui bons conhecimentos de latim, por ter vivido num mosteiro, e mais dois amigos, ele assiste à pregação do bispo:
Na manhã seguinte, o bispo do Porto fez a sua pregação no largo da Sé, o ponto mais alto da cidade. Tratava-se de uma ocasião solene, o prelado tinha a seu lado o arcebispo de Braga, representante máximo da Igreja Portuguesa, os bispos de Viseu e Lamego e um fidalgo cavaleiro em representação d’el-rei D. Afonso Henriques.
Como o largo da Sé não era suficientemente grande para todos os quinze mil cruzados e D. Pedro Pitões pregava em latim, língua que apenas uma minoria entendia, a maioria resolveu esperar nos barcos pelos seus prelados, que lhe transmitiriam a mensagem do bispo. Konrad e os seus amigos pertenciam, no entanto, aos poucos mais de mil homens que assistiam à pregação, pois Johann não tinha dificuldades em traduzi-la.
- O bispo chama a atenção para as obrigações dos bons cristãos - declarou o rapaz. - Diz que devemos colocar o serviço de Deus e da Cristandade à frente dos nossos desejos materiais. Portugal não é um reino rico, gasta muito na guerra contra os infiéis.
- Isto não começa nada bem - comentou Hadwig. - Estarão eles à espera que os ajudemos por nada?
- Ele pede-nos que não estejamos ansiosos por prosseguir viagem - continuou Johann. - Diz que o combate aos hereges aqui nesta terra é tão importante e tem tanto efeito sobre os nossos pecados quanto os combates na Terra Santa.
Os outros olharam-se desconfiados e Konrad acabou por sussurrar:
- Em Speyer, Bernardo de Claraval só garantiu absolvição para os combatentes na Terra Santa.
- Mas estes mouros daqui não são infiéis como os outros? - indagou Gunther.
Os outros encolheram os ombros e já Johann fazia sinal para que se calassem, enquanto ouvia atentamente o latim de D. Pedro Pitões.
- Lembra-nos que as lutas contra os infiéis fazem parte de uma “guerra justa” - disse por fim. - Cruzados dignos desse nome não podem recusar a luta contra os infiéis, neste caso, os mouros cruéis. Mais diz que as lutas entre cristãos, não só enfraquecem a Cristandade, como são condenadas por Deus e pela Igreja. Combater só é pecado quando não tem o consentimento de quem dispõe da legítima autoridade: a Igreja.
Neste ponto, alguns dos cruzados resolveram intervir. Exigiam saber com que recompensas podiam afinal contar, caso libertassem Lušbūna das mãos dos infiéis. O bispo do Porto retorquiu que se tratava de uma cidade rica, mas que ele não estava autorizado a negociar a recompensa. Por isso, pedia-lhes em nome d’el-rei que velejassem até à foz do Tejo, onde D. Afonso Henriques se encontraria com eles.
Como já era de esperar, o inglês Hervey de Glanville e o seu prelado Gilbert de Hastings puseram-se ao lado dos portugueses. E no fim todos concordaram em navegar até Lušbūna, pois qual era o mal em ouvir o que D. Afonso Henriques tinha para lhes oferecer?
E assim se iniciou o grande movimento:
No Porto e em Gaia, a febre da conquista aumentava de dia para dia. Principalmente, as gentes mais pobres, incluindo mulheres e crianças, que nada tinham a perder, estavam dispostas a partir para as terras longínquas e desconhecidas, junto à foz do Tejo, na esperança de uma vida melhor. Muitos deles viajaram nos barcos dos cruzados, assim como o bispo do Porto e os restantes prelados, pois os estrangeiros acabaram por concordar em velejar até ao estuário do Tejo, a fim de negociarem pessoalmente com D. Afonso Henriques.
Nota: a azul, extractos de Afonso Henriques - o Homem, a castanho de A Cruz de Esmeraldas.
Estou a ler o teu Afonso Henriques (sim, confesso que só agora. É extraordinário como os primórdios de Portugal são tão ricos neste tipo de zangas e amuos... afinal sempre fomos assim, falta-nos apenas um grande líder.
ResponderEliminarSem querer ser graxista, é de facto um excelente livro, que merecia muito mais projecção.
ResponderEliminarMuito bem.
Espero que gostes, António :)
ResponderEliminarObrigada, Daniel :)
Interessantes o discurso, os diálogos...
ResponderEliminarMostra como, sob o desígnio de guerra santa de que estavam animados os cruzados,se sobrepunha o seu interesse nos espólios.