Há coisas de que não se fala, são assuntos tabu, porque não gostamos de admitir a existência daquilo que não pode ser. Costuma dizer-se que as crianças nunca foram tão amadas como hoje. Na minha opinião, esta frase é perigosa, porque baseada numa falsa ideia do que é amar. Proporcionar às crianças bens materiais, vivências e ocupações em excesso, na verdade, não é amar. Este verbo tem mais a ver com carinho, atenção, paciência, tempo. E o que mais falta, hoje em dia, é paciência e tempo! Além disso, sempre houve, há e haverá pessoas cheias de agressividade, frustrações e infelicidade, pessoas que precisam de descarregar o seu sofrimento em alguém, por mais que aquilo a que chamamos civilização avance. As vítimas são sempre os mais fracos, aqueles que não se podem defender.
O médico alemão Michael Tsokos não mais conseguiu calar. É médico legista e a sua tarefa não consiste apenas em fazer autópsias, também examinar e documentar (em fotografias, para apresentação em tribunal) vítimas de agressões. Quando começou a sua atividade profissional, há vinte anos, ficou chocado quando teve de proceder à autópsia de um cadáver maltratado de criança. Pensou: enfim, um caso isolado. Na semana seguinte, porém, surgiu-lhe o próximo. Entretanto, já perdeu a conta a quantas crianças examinou, mortas e vivas, vítimas das agressões mais horrendas.
Ele próprio pai de quatro filhos sentiu necessidade de alertar a sociedade para este problema. Junto com uma colega de trabalho, Saskia Guddat, escreveu o livro Deutschland misshandelt seine Kinder (a Alemanha maltrata as suas crianças). O título tem sido muito criticado, porque, na opinião de muitos, não corresponde à verdade. Felizmente, os maus tratos continuam a ser a exceção. Mas Tsokos e Guddat constatam que são muitos mais do que aquilo que se pensa. Na Alemanha, morrem, todas as semanas, três crianças vítimas de maus tratos (considere-se que a Alemanha tem 80 milhões de habitantes e eu gostaria de conhecer uma estatística portuguesa deste tipo). Os dois médicos acham que as autoridades públicas não fazem o suficiente para reconhecer e prevenir casos destes. Aliás, ninguém faz, é um assunto que se ignora, olha-se para o lado. E Tsokos e Guddat dizem que ignorar é consentir. Daí o título chocante. Porque qualquer caso destes é sempre um caso a mais.
Apesar de ser pai, Michael Tsokos é perentório a afirmar que o maior perigo para as crianças são os próprios pais. As agressões inenarráveis, desde enfiar um miúdo numa banheira de água a ferver, a pontapear outro no rosto, até os olhos lhe saírem das órbitas, no verdadeiro sentido da expressão, são cometidos pelos próprios pais, ou padrastos/madrastas. A esmagadora maioria das crianças é abusada (também sexualmente) pelos progenitores! Michael Tsokos diz que mesmo os pediatras estão pouco sensibilizados para o problema. Quando encontram algo de estranho numa criança, por exemplo, uma nódoa negra, e interrogam os pais, estes fartam-se de mentir. Pais que agridem e abusam dos filhos são exímios em mentir. E, segundo Tsokos, os médicos, professores e outros profissionais que lidam com crianças preferem acreditar nas suas patranhas a enfrentarem a cruel realidade.
Tsokos e Guddat chamam também a atenção para outro tipo de maus tratos: os psicológicos, baseados em berros constantes, humilhações, ou castigos, como fechar as crianças na cave ou enviá-las com fome para a cama. Estes tipos de maus tratos são mais exercidos por pais com um alto nível académico. Como diz Michael Tsokos: os "cultos" optam mais por meios que não deixam marcas físicas.
Esta não é uma realidade apenas alemã. Nos Estados Unidos , há cerca de 800 000 casos de maus tratos e abusos por ano (os que vêm à luz). Seria interessante saber o que os médicos legistas portugueses têm a dizer sobre este assunto.
Sem comentários:
Enviar um comentário