Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

30 de outubro de 2014

D. Afonso Henriques genocida?


All About History (com página no Facebook) é uma revista que, nas suas palavras, oferece «action-packed history (...) bursting with information on times past». Eu também concordo que a História não deve ser sempre divulgada por «stuffy academic essays or squabbling professors». Mas tem de haver um mínimo de rigor!

Em outubro, foi posto à venda o primeiro número da versão portuguesa, tendo como tema líderes históricos e, no caso português, debruça-se sobre D. Afonso Henriques. O meu amigo facebookiano André Luís é que me chamou a atenção para este artigo, do qual se desconhece o autor, e teve a gentileza de me enviar esta fotografia.

Neste excerto, encontram-se grandes imprecisões, informações falsas e juízos de valor descabidos. Em primeiro lugar, diz-se que D. Afonso Henriques participou numa última campanha, em 1184, para ajudar o filho a combater um exército mourisco que cercava Santarém. Isto é falso! D. Afonso Henriques, nessa altura, tinha cerca de 75 anos e havia 15 que se encontrava muito incapacitado, em sequência do desastre sofrido em Badajoz, essa sim, a sua última campanha militar. Não se sabe bem qual a dimensão dos ferimentos sofridos e alguns hstoriadores, no passado, consideravam que ele não mais montara nem combatera, não por estar incapacitado, mas porque o tinha prometido ao genro, D. Fernando II de Leão, de quem foi prisioneiro. Na sua biografia de D. Afonso Henriques, o Professor José Mattoso é de opinião de que não se trataria de mera promessa. O rei teria ficado muito limitado fisicamente, talvez até nem tenha mais conseguido andar pelo próprio pé. Ora, a ser assim, nunca teria participado numa campanha militar, a pouco mais de um ano da sua morte (D. Afonso Henriques morreu a 6 de dezembro de 1185).

O artigo fala ainda na «sua sede de sangue», «intolerância religiosa» e diz que «enveredou por uma série de campanhas de genocídio contra o povo islâmico». Quem assim escreve, não faz ideia, por um lado, do que era a Idade Média e, por outro, do que era a Reconquista Hispânica!

A série de combates que se prolongaram por vários séculos e a que se chama Reconquista tinha, de facto, um fundo religioso, mas este estava longe de ser o motivo principal. Talvez o fosse, no seu início. Porém, monarcas como D. Afonso Henriques, o seu avô D. Afonso VI, ou os outros que se lhes seguiram, estavam bem mais interessados na conquista de territórios do que na aniquilação dos mouros ou na propagação da fé. Estabeleceram inúmeras alianças com líderes muçulmanos, muitas vezes, a fim de melhor lutarem entre si (cristãos contra cristãos). O desastre de Badajoz deu-se porque D. Fernando II de Leão veio em socorro do rei mouro daquela cidade, com quem estabelecera um pacto! Também D. Afonso Henriques estabeleceu uma duradoura aliança de amizade com Ibn Qasi, um líder religioso islâmico do Gharb.

A Reconquista baseou-se mais em razias e saques de parte a parte do que numa guerra global, ou numa política sistemática de aniquilação de povos. Muitos cristãos das terras de fronteira enriqueciam com as algaras em terras de mouros, que se levavam a cabo regularmente, passaram mesmo a ser um modo de vida. É por isso descabido falar em genocídio. Os mouros desapareceram destas paragens, sim, mas só séculos depois de D. Afonso Henriques ter morrido!

Depois das conquistas de Santarém e Lisboa, o nosso primeiro rei pôs a população moura sob a sua proteção pessoal, os chamados mouros-forros. É verdade que se tiveram de aquartelar fora de muros e lhes estavam vedados alguns direitos que hoje consideramos essenciais, mas lembremos que na época não havia a noção de direitos universais do ser humano. Mesmo entre cristãos, o povo (muitas vezes apelidado de arraia-miúda e que representava 90% da população) não tinha os mesmos direitos da elite nobre e eclesiástica.

A «sua sede de sangue» também é falsa. Basta conhecer a História Medieval Europeia para constatar que D. Afonso Henriques não foi dos monarcas que mais se destacaram pelo temperamento sanguinário. Assim como não há provas de que ele tenha expulsado sua mãe do Condado Portucalense, ou que a tenha posto a ferros, como conta a lenda. Mesmo a expulsão de D. Fernão Peres de Trava foi temporária. Na referida biografia, o Professor Mattoso documenta a presença do conde galego na corte coimbrã, escassos três ou quatro anos depois da Batalha de São Mamede.

O artigo da All About History peca por misturar lenda com veracidade histórica, se bem que acabe por referir que o comportamento do nosso primeiro rei estava de acordo com a época em que viveu. Porém, se o autor tem consciência disso, mais se estranham as expressões e afirmações anteriores.


5 comentários:

  1. Cristinamiga

    Não deites pérolas a porcos porque o All About History nem chega a ser um filme de cóbois e índios com penas na cachimónia...

    Há gente para tudo... até o Afonso Henriques

    Qjs

    Ainda não publicaste a capa do meu novo livro. Que se passa?

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  2. Sim, o All About History prova não ter qualidade. Ainda assim, é bom alertar os compradores, pois nem todos saberão o que se passa e podem adquirir a revista confiantes de que vão ler algo informativo e fundamentado.

    A capa do teu novo livro há de surgir.

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  3. É perigoso interpretar o passado à luz dos valores actuais. A contextualização é fundamental e quem se esquece disso presta um mau serviço às pessoas.

    Excelente post, Cristina. Parabéns.

    Bj

    Olinda

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  4. Obrigada, Olinda :)

    Não tenho recebido atualizações do teu blogue, tenho de averiguar isso. O Google, de vez em quando, prega partidas dessas.

    Bj

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  5. Bem lembrado Cristina, (em algum nuance de facto) está mais a Revista "pocket".

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