Este é um livro de início discreto, mas que encerra
em si uma pérola. De repente, deparamos com cenas de grande intensidade e beleza,
que nos deixam suspensos, se nos entranham no pensamento e demoram a partir.
Conta a história de um bairro lisboeta, de
ambiente familiar como o de uma aldeia, com as suas vantagens e desvantagens:
por um lado, o facto de todos se conhecerem e ajudarem, por outro, o controle
sobre as vidas de cada um, que, por vezes, deixa pouco espaço para a
privacidade. Principalmente para as mulheres:
«Leonor viu-lhe as costas e soube que tinha
de pensar depressa. Soube saber o que queria. A solidão cheirava a plástico,
tinha o sabor artificial do nada. Mas hoje as estrelas tinham caído. Só não
sabia que todas para dentro da sua cabeça onde se chocavam estrelejavam,
rompendo em fagulhas que lhe minavam o juízo. Entreabriu os lábios mas o som
não saiu. E ele afastava-se. Sabia o que provocaria quando verbalizasse o que
pensava. Os homens olhá-la-iam de outro modo, as mulheres chamar-lhe-iam nomes.
Mas ela sabia que o seu nome era apenas mulher» (p. 84).
Este romance de João J. A. Madeira é também uma
interrogação sobre a vida que levamos, que tantas vezes não é aquela que
queremos, mas a que programaram para nós, ou a que nos dá a ilusão de
felicidade. Esbarramos constantemente nas pessoas erradas, que nos roubam a essência
e a energia. Procuramos escapes, seja no envolvimento em casos amorosos que nos
consolam enquanto duram, mas que acabam de maneira abrupta, inglória, seja na
escrita de um livro, no fundo, a construção de uma segunda vida:
«Pensei, sem saber porque disso me convenci,
ter sido bafejado no nascimento pelo dom de escrever quando, na realidade, a
qualidade doada fora a de saber afastar-me de mundos que sentia não serem os
meus. Graças à palavra, que nem fui capaz de usar de viva voz nos momentos
adequados, refugiei-me isso sim escondidinho com ela num canto, aquecendo-nos e
apoiando-nos mutuamente como dois seres abandonados aos quais ninguém mais
compreendia» (pp 110/111).
O acordar para a realidade pode ser brutal. E,
porém, mesmo depois de tomarmos consciência de que vivemos amarrados e desejamos
a libertação, mesmo depois de descobrirmos a pessoa certa, no lugar e nas
circunstâncias mais inesperados, tornamos a sucumbir às amarras, seja por amor,
por medo, pelas convenções, ou por simples habituação. Rodeamo-nos de silêncios,
de incógnitas, de palavras não ditas, de explicações não dadas, de desilusões.
Um romance cheio de vidas e oportunidades
desperdiçadas.
Não será essa a nossa sina?
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