Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

14 de janeiro de 2015

O Rio que corre na Calçada




Este é um livro de início discreto, mas que encerra em si uma pérola. De repente, deparamos com cenas de grande intensidade e beleza, que nos deixam suspensos, se nos entranham no pensamento e demoram a partir.

Conta a história de um bairro lisboeta, de ambiente familiar como o de uma aldeia, com as suas vantagens e desvantagens: por um lado, o facto de todos se conhecerem e ajudarem, por outro, o controle sobre as vidas de cada um, que, por vezes, deixa pouco espaço para a privacidade. Principalmente para as mulheres:

«Leonor viu-lhe as costas e soube que tinha de pensar depressa. Soube saber o que queria. A solidão cheirava a plástico, tinha o sabor artificial do nada. Mas hoje as estrelas tinham caído. Só não sabia que todas para dentro da sua cabeça onde se chocavam estrelejavam, rompendo em fagulhas que lhe minavam o juízo. Entreabriu os lábios mas o som não saiu. E ele afastava-se. Sabia o que provocaria quando verbalizasse o que pensava. Os homens olhá-la-iam de outro modo, as mulheres chamar-lhe-iam nomes. Mas ela sabia que o seu nome era apenas mulher» (p. 84).

Este romance de João J. A. Madeira é também uma interrogação sobre a vida que levamos, que tantas vezes não é aquela que queremos, mas a que programaram para nós, ou a que nos dá a ilusão de felicidade. Esbarramos constantemente nas pessoas erradas, que nos roubam a essência e a energia. Procuramos escapes, seja no envolvimento em casos amorosos que nos consolam enquanto duram, mas que acabam de maneira abrupta, inglória, seja na escrita de um livro, no fundo, a construção de uma segunda vida:

«Pensei, sem saber porque disso me convenci, ter sido bafejado no nascimento pelo dom de escrever quando, na realidade, a qualidade doada fora a de saber afastar-me de mundos que sentia não serem os meus. Graças à palavra, que nem fui capaz de usar de viva voz nos momentos adequados, refugiei-me isso sim escondidinho com ela num canto, aquecendo-nos e apoiando-nos mutuamente como dois seres abandonados aos quais ninguém mais compreendia» (pp 110/111).

O acordar para a realidade pode ser brutal. E, porém, mesmo depois de tomarmos consciência de que vivemos amarrados e desejamos a libertação, mesmo depois de descobrirmos a pessoa certa, no lugar e nas circunstâncias mais inesperados, tornamos a sucumbir às amarras, seja por amor, por medo, pelas convenções, ou por simples habituação. Rodeamo-nos de silêncios, de incógnitas, de palavras não ditas, de explicações não dadas, de desilusões.

Um romance cheio de vidas e oportunidades desperdiçadas.
Não será essa a nossa sina?


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