Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

28 de maio de 2015

Perdoar



(Texto baseado nas declarações do teólogo e pedagogo alemão Christoph Hutter, do centro de aconselhamento psicológico de Lingen – artigo da Kirchenzeitung de 05.04.2015)

Em casos de ofensas ou abusos graves, a reconciliação só é possível se o culpado permitir o perdão à vítima, ou seja, reconhecer que agiu mal. Para isso, é necessário termos uma relação mais descontraída com a culpa. A nossa sociedade torna difícil o reconhecimento dos erros, há uma grande necessidade de causar boa impressão, de parecer perfeito, o que nos torna incapazes de suportar a culpa. Só quando se torna evidente e aceitável que toda a gente erra, se criam condições para resolver conflitos e discórdias.

O pedido “perdoa-me” é como que uma ponte dourada entre ofensor e ofendido e permite sanar os conflitos. E é mais fácil pedir perdão e perdoar se não tentarmos, por todos os meios, sermos perfeitos e aceitarmos que errar é natural. Assim se torna igualmente mais natural discutir de modo saudável, ter consideração pelo outro, estabelecer e aceitar fronteiras, aceitar a culpa, perdoar e reconciliar-se.

Existe a ideia de que a reconciliação exige muito sacrifício, mas não tem de ser assim. As relações que possuem um fundamento sólido tornam mais fácil o pedir perdão, o perdoar e a reconciliação, como é o caso dos apaixonados, ou de relações duradouras, em que os parceiros sentem prazer em estar um com o outro. O sistema que rege as relações interpessoais no nosso cérebro coopera com a motivação. A minha ligação aos outros anda de mão dada com o reconhecimento das minhas qualidades e com o sentir-me bem na minha pele.

A decisão de perdoar e o desejo de continuar, ou reatar, uma relação ficam, porém, ao critério de cada um. Por vezes, existem boas razões para um distanciamento ou separação, para o quebrar do contacto, mas é psicologicamente prejudicial entregarmo-nos ao rancor, à ira ou ao ódio. Normalmente, as pessoas vivem mais felizes, se conseguirem libertar-se um pouco das suas feridas e preocupar-se menos com contas por saldar. Este pode ser um bom caminho para a reconciliação. A decisão, porém, continua a ser de cada um e ninguém tem o direito de exigir a reconciliação ao seu semelhante. Muito menos, o causador das feridas.


26 de maio de 2015

Os Segredos de Jacinta - Excertos (24)



Jacinta não sabia o que pensar. Tornou a agradecer ao irmão Ambrósio, mas não conseguia partilhar da sua euforia. Duvidava que el-rei e o arcebispo se lembrassem dela, uma mulher, depois de terminado o pesadelo. E quiçá D. João Peculiar houvesse exagerado nas suas afirmações, a fim de agradar ao monge. Ou o próprio irmão Ambrósio, no seu entusiasmo, houvesse visto aceitação e admiração a mais nas atitudes dele.
            Tornou a concentrar-se no seu labor, estava ainda longe de poder repousar. E o seu ceticismo em relação ao ataque do dia seguinte provou não ser infundado. Se bem que houvesse um pequeno avanço, o desfecho foi, mais uma vez, catastrófico. Os ingleses conseguiram evitar que a torre pegasse fogo e, dotado de um novo sistema de rodízios, o engenho não ficou atolado na areia. Os mouros, porém, atreveram-se a uma surtida, por um dos postigos virados ao rio, e dera-se novo massacre, na areia, que se empapara com o sangue dos corpos.
Os combates só foram retomados dois dias mais tarde, quando finalmente se deu a viragem. Os ingleses chegaram às muralhas com a torre. E, antes que pudessem usar o passadiço que lhes permitiria alcançar o adarve, os sarracenos depuseram as armas. Anunciaram que desejavam negociar tréguas, mas apenas com el-rei de Portugal!
Aos cruzados não agradava que D. Afonso Henriques negociasse sozinho com o alcaide, sendo de opinião que os portugueses pouco contributo haviam dado para o sucesso do cerco. Seguiu-se uma série de contratempos e insubordinações e, na noite de 22 para 23 de outubro, um grupo penetrou traiçoeiramente na cidade, buscando um tesouro que se dizia escondido pelos mouros.
- Os cruzados ainda deitam tudo a perder – lamentou o irmão Ambrósio, – quando julgávamos haver o pesadelo chegado ao fim!
D. Afonso Henriques acabou por controlar a situação, garantindo a subjugação dos estrangeiros, mas a busca do tesouro, que não existia, resultara em mais cadáveres pelas ruas da cidade, incluindo mulheres e crianças. Também o velho bispo moçárabe foi encontrado no meio de uma poça de sangue, de goela cortada.


24 de maio de 2015

Licor Chamoa


Tendo familiares em Santa Maria da Feira, adquiri uma ligação afetiva a essa cidade, na infância e na juventude, em férias que lá passei e em inúmeras visitas aos meus tios e primos. Depois, as vidas tomaram outros rumos e, no meu caso, a ida para a Alemanha, em 1992, afastou-me de pessoas e lugares.

Felizmente há acasos que despertam coisas adormecidas dentro de nós. Há uns anos, escrevi o meu romance sobre D. Afonso Henriques decidida a explorar facetas desconhecidas do monarca. E descobrir que ele terá tido uma grande paixão, com quem terá pretendido debalde casar, foi quase como abrir uma caixinha de joias, de cuja existência ninguém desconfiava.

O nome da protagonista era Châmoa Gomes, uma relação que, aliás, parece ter acabado com o casamento do monarca. As razões perderam-se no tempo. Eu é que não podia perder a oportunidade! E, quando precisei de localizar uma cena decisiva, veio-me ao pensamento a imagem do castelo de Santa Maria da Feira, que tantas vezes visualizei, da varanda dos meus tios.


A decisão acarretou consequências agradáveis. Como já aqui tinha referido, Miguel Bernardes, um empresário feirense ligado à restauração, liderou o processo de criação e produção do licor de Chamoa, baseado nessa paixão de D. Afonso Henriques e tornado na bebida oficial da Viagem Medieval, que se realiza todos os anos em terras de Santa Maria.

 
 Ontem, estive precisamente em Santa Maria da Feira e o Daniel Santos, promotor do 2711, guiou-me aos locais onde se vende o licor e se pode ler um pequeno excerto do meu livro. Fiquei com o tal brilho nos olhos, referido pelo Daniel. E travei conhecimento com o próprio Miguel Bernardes, proprietário do Praceta Restaurante, onde adorámos almoçar. Entre outras delícias, o meu marido ficou maravilhado com o bife Praceta, servido com um molho que inclui chocolate e que prova o poder de criação do Miguel Bernardes. De entre as ideias que ele ainda apresentará, talvez arranje inspiração em mais algum dos meus romances…

Com o Daniel e o Miguel Bernardes, a tentar controlar as diabruras da Lucy
 Aproveito para agradecer mais uma vez ao Daniel o tempo que nos dispensou, proporcionando-nos um dia excecional, pois tivemos ainda oportunidade de apreciar o Teatro de Rua de Santa Maria da Feira, já que a nossa visita coincidiu com a edição deste ano.


 

19 de maio de 2015

Os Segredos de Jacinta - Excertos (23)



Os mouros provaram não tencionar desistir. Martim Moniz e o seu grupo conseguiram forçar a abertura da porta, mas os sarracenos adiantaram-se, saindo e provocando grande matança entre os cavaleiros portugueses. Martim Moniz tentou impedir que fechassem novamente os portões e acabou por morrer esmagado.
O ataque deixou feridos a agonizar na encosta da alcáçova e, embora já houvesse gente a tratar deles, o irmão Ambrósio rogou a Jacinta que fosse em seu auxílio, pois mais ninguém curava como ela.
Seguiu o monge até ao local, apesar de fatigada, com as madeixas a soltarem-se-lhe da trança, acossadas pelo vento forte. Movia-se entre os mortos e feridos dando as suas ordens, de sentimentos fechados, constatando haver poucos guerreiros a quem acudir, pelo que se despacharia lesta. Não lhe parecia, aliás, haver tarefas que exigissem a sua intervenção e censurou interiormente o irmão Ambrósio, que a arrastara até ali sem necessidade.
Antes de volver ao acampamento, deu mais uma volta, por descarga de consciência. Perto do cemitério islâmico, ouviu alguém berrar. Virou-se e viu um guerreiro que ainda não estava a ser assistido e que se tentava arrastar. Gritou-lhe:
- Deixai-vos estar! Vou a caminho!
O homem rebolou, ficando deitado de costas. Jacinta viu-lhe a barriga ensanguentada. Mas viu algo mais que a fez sentir-se como se lhe tivessem igualmente furado as entranhas. Ao rebolar, o cavaleiro perdera o capelo de ferro e o cabelo escapava-se-lhe do almofre, agitando-se ao vento. Cabelo de um castanho inconfundível!


18 de maio de 2015

14 de maio de 2015

Na terça-feira passada, em Bragança


Passei umas horas muito agradáveis na Biblioteca do Agrupamento de Escolas Abade de Baçal, na passada terça-feira, 12 de maio. A organização foi um primor, os alunos interessados puseram questões oportunas, os professores presentes estavam bem preparados para a minha visita e empenhados em manter o ritmo da conversa (plenamente conseguido).


E foi tão bom falar de D. Afonso Henriques, de D. Dinis e dos primeiros portugueses da História, a gente do século XII, que se viu envolvida na fundação de uma nação. Porque toda essa gente fez História. Como diz o Professor José Mattoso: «O passado dos homens não foi só a sua vida pública. Foi também o jogo ou a luta de cada dia e aquilo em que eles acreditaram».




Muito obrigada a todas as pessoas que me proporcionaram manhã tão agradável!
Destaco a Diretora do Agrupamento das Escolas Abade de Baçal, Teresa Sá Pires; a Coordenadora das bibliotecas do Agrupamento e professora bibliotecária da escola Básica Augusto Moreno, Elisa Ramos; e um obrigada muito especial ao professor bibliotecário da Escola Secundária Abade de Baçal, António da Palma Ferreira.




"Last but not the least", agradeço aos alunos, que me fizeram acreditar nos jovens de hoje, apesar de tudo o que é dito e do que circula nas redes sociais. Vocês foram impecáveis!!! 

12 de maio de 2015

Os Segredos de Jacinta - Excertos (22)



- Que desgraça, D. Jacinta! Que grande matança… Os cruzados estão desesperados… Hão mister de auxílio… Vós sabeis falar latim… E sois tão boa curandeira…
Os mouros haviam dado a volta à situação, disparando setas incendiárias com as suas bestas, ao abrigo dos merlões quadrados. As fundas baleares dos alemães e flamengos arderam e a pesada torre dos ingleses acabou atolada na areia e igualmente consumida pelo fogo. Os cruzados fugiram desordenadamente, sob a chuva de projéteis vinda do adarve.
Jacinta reuniu as suas ajudantes e seguiram o irmão Ambrósio com o seu grupo de monges, encosta abaixo. Viram os corpos espalhados entre as muralhas e a colina do oriente, mas nem todos estavam mortos. Braços agitavam-se, ouviam-se gritos desesperados, alguns arrastavam-se a esvair-se em sangue.
O grupo de Jacinta juntou-se aos que já tentavam tirar dali os sobreviventes. Não se abeiravam, contudo, das muralhas, receando que ainda viesse uma ou outra seta moura, pelo que se viam obrigados a ignorar os feridos que nesse local de perigo jazessem. Agiam por instinto, no meio do desespero daqueles que viam a morte à frente e imploravam salvação. No ar empestado com o odor metálico do sangue e dos engenhos queimados, tentavam suster as hemorragias com panos. Alguns monges dedicavam-se aos moribundos, murmurando as orações da extrema-unção, garantindo-lhes que iriam direitos ao Paraíso, procurando assim aliviar as suas almas atormentadas.
Entretanto Jacinta e as outras mulheres dirigiram-se às tendas onde se depositavam os feridos. Tentar salvá-los era, porém, uma tarefa quase inglória, além de que não havia como minorar o sofrimento e as dores. Labutaram pela noite fora, tão ensopadas em sangue como os seus enfermos.