Estava muito curiosa em relação a este
livro (que li na versão alemã Die hohen
Berge Portugals) por duas razões. Em primeiro lugar, foi escrito por Yann
Martel, o autor do fantástico A Vida de
Pi, vencedor do Man Booker Prize
2002 e que deu origem a um filme. Em segundo lugar,
interessa-me sempre ler sobre o nosso país, quando descrito por alguém de fora,
acho que temos imenso a ganhar com a mudança de perspetiva.
Custa-me muito dizer que o livro me desiludiu. O enredo podia acontecer num outro país qualquer, não necessariamente Portugal, perdendo-se o encanto de nos vermos com olhos estrangeiros. Além disso, ao descrever a paisagem do nordeste transmontano, Yann Martel diz que em Portugal não existem montanhas a sério, apenas colinas pintadas de verde!
Colinas pintadas de verde, na terra de Torga?
O romance está dividido em três partes. Na primeira, passada em 1904, o jovem Tomás, a fim de superar o desgosto causado pela morte da namorada e do filho pequeno, pega no carro do tio rico e parte para as altas montanhas de Portugal, à procura de um crucifixo esquecido, mas que ele desconfia ser grande obra de arte. Depois de ler o diário de um Padre Ulisses, missionário em África no século XVII, Tomás chega à conclusão de que o crucifixo se encontra na igreja de alguma aldeia do distrito de Bragança.
O ponto de partida é aliciante, mas é confrangedor constatar que Yann Martel pouco sabe sobre o nosso país. Para começar, temos uma volta pela cidade de Lisboa com o tio de Tomás, que pretende ensinar o sobrinho a guiar (naquela altura, ainda não havia carta de condução). Yann Martel nomeia ruas, descrevendo um percurso que eu, com poucos conhecimentos de Lisboa, não posso avaliar, mas sei que ele comete um grande erro ao situar a estátua do Marquês de Pombal na Praça do Comércio!
Tomás inicia a sua viagem e o autor prova ter pesquisado, apresentando nomes de localidades: Póvoa de Santa Iria, Alverca do Ribatejo, Alhandra, Porto Alto (apesar de sabermos que o eixo Lisboa-Santarém-Coimbra-Porto se usa desde a era romana, pelo que deduzo que houvesse, já em 1904, alguma espécie de estrada, ou caminho, Tomás embrenha-se pelo interior do país), Ponte de Sor, Rosmaninhal, Atalaia, etc. Os habitantes das localidades por onde passa maldizem a máquina barulhenta, alguns tornam-se mesmo violentos. Além disso, Tomás vê-se aflito para guiar (vai aprendendo à medida que avança) e para arranjar o combustível nafta, que encontra nas farmácias, mas em quantidades pequenas (ainda não há bombas de gasolina). O leitor segue divertido estas peripécias. O problema é que o cenário podia ser outro qualquer! Como já referi, não há nada que se possa definir como exclusivamente português, além do nome das terras.
Tomás chega a Castelo Branco e aí a narrativa torna-se desastrosa, pois, num ápice, o jovem alcança Macedo de Cavaleiros, como se estas duas cidades ficassem ao lado uma da outra! Chegado a Trás-os-Montes, admira-se por as montanhas não serem tão altas assim. Não passam de colinas verdes! O jovem, que nunca tinha saído de Lisboa, chega à conclusão de que em Portugal não há montanhas altas, o que se torna ainda mais ridículo, se pensarmos que ele, para ir de Castelo Branco a Macedo de Cavaleiros, teria forçosamente de passar pela Serra da Estrela!
A segunda parte do romance passa-se em 1939, em Bragança, um episódio surreal à volta de um médico legista, a quem surge uma senhora a pedir que autopsie o cadáver do marido (já haveria médico legista, nesta altura, em Bragança?). A senhora é oriunda de uma aldeia daquele distrito, da qual o médico legista nunca ouviu falar! A sério? No único hospital da região? Quando ele pergunta onde fica a aldeia, ela responde: «nas altas montanhas de Portugal», admirando o médico, que diz já ter ouvido falar desse sítio - como se Bragança não fizesse parte desse cenário!
Na terceira parte, início dos anos 1980, tomamos conhecimento com um senador canadiano à beira da reforma, descendente de portugueses. Depois de enviuvar e desiludido com a vida, resolve regressar à terra de origem da sua família, uma aldeia perdida… «nas altas montanhas de Portugal». Faz-se acompanhar por um chimpanzé, que salva de um laboratório de experiências. Uma atitude nobre, não há dúvida, mas convenhamos: o homem, sem saber uma palavra de Português, instala-se numa aldeia perdida nos montes transmontanos, acompanhado de um chimpanzé e toda a gente acha imensa piada? Os habitantes são caracterizados como hospitaleiros, mas eu sinceramente não consigo imaginar que gente dessa se dê bem com um chimpanzé andando livre pelas ruas da sua aldeia! Um chimpanzé que pertence a um estrangeiro que eles nunca viram mais gordo e ninguém sabe que os pais dele eram oriundos da sua terra. Os aldeãos transmontanos são hospitaleiros, sim, mas tudo o que fuja à ordem que eles conhecem é olhado com desconfiança. Sei isso por experiência própria. Além disso, a paisagem é caracterizada com as tais colinas verdes, cobertas de pinhais, onde surgem, de repente, grandes rochas. Pode ser muito bonito, mas não é o nordeste transmontano!
Yann Martel corre o risco de se perder nas imagens e simbologias que constrói na sua cabeça, tornando-se muito difícil compreender onde quer chegar. Será que é sua ambição escrever apenas para ele próprio? Os temas centrais deste romance são a fé religiosa, a maneira como cada pessoa reage à perda e o questionar sobre o sentido da vida (que implica uma reaproximação aos outros animais). Na minha opinião, porém, o autor foi longe demais em certos momentos surrealistas. Além disso, não considero bem sucedida, neste caso, a mistura entre fantasia e realidade. Numa entrevista de Yann Martel à revista alemã Bücher Magazin, ele diz que as montanhas aqui descritas são produto da sua fantasia, que tal lugar não existe em Portugal. Valha-nos isso! Mas será legítimo usar o nosso país tão abusivamente, não dizendo nada de jeito sobre ele, dando informações falsas? As pessoas que não conhecem Portugal (e Yann Martel tem leitores em todo o mundo e em todas as línguas) não sabem fazer essa distinção. E, se é fantasia, porque se deu o autor ao trabalho de pesquisar tantos nomes?
Custa-me muito dizer que o livro me desiludiu. O enredo podia acontecer num outro país qualquer, não necessariamente Portugal, perdendo-se o encanto de nos vermos com olhos estrangeiros. Além disso, ao descrever a paisagem do nordeste transmontano, Yann Martel diz que em Portugal não existem montanhas a sério, apenas colinas pintadas de verde!
Colinas pintadas de verde, na terra de Torga?
O romance está dividido em três partes. Na primeira, passada em 1904, o jovem Tomás, a fim de superar o desgosto causado pela morte da namorada e do filho pequeno, pega no carro do tio rico e parte para as altas montanhas de Portugal, à procura de um crucifixo esquecido, mas que ele desconfia ser grande obra de arte. Depois de ler o diário de um Padre Ulisses, missionário em África no século XVII, Tomás chega à conclusão de que o crucifixo se encontra na igreja de alguma aldeia do distrito de Bragança.
O ponto de partida é aliciante, mas é confrangedor constatar que Yann Martel pouco sabe sobre o nosso país. Para começar, temos uma volta pela cidade de Lisboa com o tio de Tomás, que pretende ensinar o sobrinho a guiar (naquela altura, ainda não havia carta de condução). Yann Martel nomeia ruas, descrevendo um percurso que eu, com poucos conhecimentos de Lisboa, não posso avaliar, mas sei que ele comete um grande erro ao situar a estátua do Marquês de Pombal na Praça do Comércio!
Tomás inicia a sua viagem e o autor prova ter pesquisado, apresentando nomes de localidades: Póvoa de Santa Iria, Alverca do Ribatejo, Alhandra, Porto Alto (apesar de sabermos que o eixo Lisboa-Santarém-Coimbra-Porto se usa desde a era romana, pelo que deduzo que houvesse, já em 1904, alguma espécie de estrada, ou caminho, Tomás embrenha-se pelo interior do país), Ponte de Sor, Rosmaninhal, Atalaia, etc. Os habitantes das localidades por onde passa maldizem a máquina barulhenta, alguns tornam-se mesmo violentos. Além disso, Tomás vê-se aflito para guiar (vai aprendendo à medida que avança) e para arranjar o combustível nafta, que encontra nas farmácias, mas em quantidades pequenas (ainda não há bombas de gasolina). O leitor segue divertido estas peripécias. O problema é que o cenário podia ser outro qualquer! Como já referi, não há nada que se possa definir como exclusivamente português, além do nome das terras.
Tomás chega a Castelo Branco e aí a narrativa torna-se desastrosa, pois, num ápice, o jovem alcança Macedo de Cavaleiros, como se estas duas cidades ficassem ao lado uma da outra! Chegado a Trás-os-Montes, admira-se por as montanhas não serem tão altas assim. Não passam de colinas verdes! O jovem, que nunca tinha saído de Lisboa, chega à conclusão de que em Portugal não há montanhas altas, o que se torna ainda mais ridículo, se pensarmos que ele, para ir de Castelo Branco a Macedo de Cavaleiros, teria forçosamente de passar pela Serra da Estrela!
A segunda parte do romance passa-se em 1939, em Bragança, um episódio surreal à volta de um médico legista, a quem surge uma senhora a pedir que autopsie o cadáver do marido (já haveria médico legista, nesta altura, em Bragança?). A senhora é oriunda de uma aldeia daquele distrito, da qual o médico legista nunca ouviu falar! A sério? No único hospital da região? Quando ele pergunta onde fica a aldeia, ela responde: «nas altas montanhas de Portugal», admirando o médico, que diz já ter ouvido falar desse sítio - como se Bragança não fizesse parte desse cenário!
Na terceira parte, início dos anos 1980, tomamos conhecimento com um senador canadiano à beira da reforma, descendente de portugueses. Depois de enviuvar e desiludido com a vida, resolve regressar à terra de origem da sua família, uma aldeia perdida… «nas altas montanhas de Portugal». Faz-se acompanhar por um chimpanzé, que salva de um laboratório de experiências. Uma atitude nobre, não há dúvida, mas convenhamos: o homem, sem saber uma palavra de Português, instala-se numa aldeia perdida nos montes transmontanos, acompanhado de um chimpanzé e toda a gente acha imensa piada? Os habitantes são caracterizados como hospitaleiros, mas eu sinceramente não consigo imaginar que gente dessa se dê bem com um chimpanzé andando livre pelas ruas da sua aldeia! Um chimpanzé que pertence a um estrangeiro que eles nunca viram mais gordo e ninguém sabe que os pais dele eram oriundos da sua terra. Os aldeãos transmontanos são hospitaleiros, sim, mas tudo o que fuja à ordem que eles conhecem é olhado com desconfiança. Sei isso por experiência própria. Além disso, a paisagem é caracterizada com as tais colinas verdes, cobertas de pinhais, onde surgem, de repente, grandes rochas. Pode ser muito bonito, mas não é o nordeste transmontano!
Yann Martel corre o risco de se perder nas imagens e simbologias que constrói na sua cabeça, tornando-se muito difícil compreender onde quer chegar. Será que é sua ambição escrever apenas para ele próprio? Os temas centrais deste romance são a fé religiosa, a maneira como cada pessoa reage à perda e o questionar sobre o sentido da vida (que implica uma reaproximação aos outros animais). Na minha opinião, porém, o autor foi longe demais em certos momentos surrealistas. Além disso, não considero bem sucedida, neste caso, a mistura entre fantasia e realidade. Numa entrevista de Yann Martel à revista alemã Bücher Magazin, ele diz que as montanhas aqui descritas são produto da sua fantasia, que tal lugar não existe em Portugal. Valha-nos isso! Mas será legítimo usar o nosso país tão abusivamente, não dizendo nada de jeito sobre ele, dando informações falsas? As pessoas que não conhecem Portugal (e Yann Martel tem leitores em todo o mundo e em todas as línguas) não sabem fazer essa distinção. E, se é fantasia, porque se deu o autor ao trabalho de pesquisar tantos nomes?
Não li o livro mas li sobre o mesmo no blog Malomil. O que me desgostou bastante:
ResponderEliminar"No último livro de Yann Martel, As Altas Montanhas de Portugal, passam-se coisas curiosas. Falamos da edição original, em língua inglesa – a que dá conta do aturado trabalho de campo que Martel fez por terras lusitanas. Na tradução portuguesa houve o cuidado de expurgar as calinadas mais graves. Duas, em grande.
Primeira: na Praça do Comércio, o protagonista contempla a estátua do… Marquês de Pombal. Segunda: a acção decorre em 1904 mas a dado passo surge a Calçada Ribeiro Santos, homenagem toponímica ao estudante morto pela PIDE."
Texto completo aqui:
http://malomil.blogspot.fi/2016/06/yao-martelao.html
Como se podem editar livros assim?
Muito obrigada pelo seu comentário. Não conhecia o texto do blogue Malomil e gostei muito de ler.
ResponderEliminarOs portugueses e todos aqueles que conhecem o nosso país (mas só quem o conhecer muito bem) notam os erros, os outros não. Indigna-me que Yann Martel tenha usado o nosso país para escrever um livro de episódios surreais de eficácia muito duvidosa. Na minha opinião, o mundo editorial português (ou a SPA, ou a APEL, ou seja quem for) devia apresentar um protesto em relação a este livro!
Bom dia, Cristina Torrão. Compreendo-as e concordo com as críticas que faz!!! Pode ff de me dizer se tem ideia de haver alguma outra publicação de Martel (entrevista, diário, artigo...) em que ele se refira à(s) sua(s) passagem(ns) por Trás-os-Montes? Muito obrigado, um literário abraço, manuel cardoso
ResponderEliminarCaro Manuel Cardoso, lamento, mas não sei. Aludo, no meu post, à entrevista que Martel deu a uma revista de livros alemã, mas aí ele não fala no nosso país, apenas diz que o cenário idealizado é por si inventado.
ResponderEliminarNão o posso garantir, mas penso que ele nunca esteve em Portugal. Quis um cenário exótico para o seu romance, ouviu falar do nosso país, talvez tenha pesquisado um pouco na internet (nomes de terras, sobretudo), mas não mais do que isso. Esta é apenas a minha opinião, repito que não posso garantir que tenha sido assim.