Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

3 de outubro de 2024

O fosso

Dois livros, alguns excertos.

O primeiro livro:

“As crianças do 25 de Abril foram expostas à pornografia antes de saberem como se faziam bebés (…). A despontarem para a vida, viviam numa espécie de terra de ninguém, pela qual não se encontravam responsáveis. Pairavam no vazio formado entre o culto da liberdade sem limites e a crença salazarista mantida pelas mães e avós de que Portugal era um país mais temente a Deus, de melhores costumes, um oásis de santidade perante um estrangeiro devasso”.

“Ainda apática, saída de um mundo desprovido de sexo, um mundo em que os genitais eram porcos, males necessários para se expelirem os detritos do corpo, ela espantava-se com os cartazes e os títulos sugestivos das películas em cena no Sá da Bandeira, um verdadeiro templo da arte pornográfica, enquanto esperava pelo autocarro”.

“Sentindo-se impotentes perante o fenómeno e na sua tentativa desesperada de a manter agarrada às antigas convenções, os pais empurravam-na para uma dualidade de comportamentos, criavam a cultura do fingimento: a nossa casa é uma coisa e o mundo lá fora é outra. Dentro de casa, é feio falar de sexo; lá fora, o sexo é exibido em todo o lado. No meio, ficava o vazio, a tal terra de ninguém, (…) o fosso, que se cavava cada vez mais fundo”.

 

E o segundo livro:

“Nada, nem a inteligência, nem os estudos, nem a beleza, contava tanto como a reputação sexual de uma rapariga, o mesmo é dizer o seu valor no mercado de casamentos, onde as mães, seguindo o exemplo das suas próprias mães, se armavam em guardiãs".

“Ao sábado, em fila, casavam as raparigas de véu branco, que davam à luz seis meses mais tarde uns rapagões considerados prematuros. Presas entre a liberdade de Bardot, o gozo dos rapazes a dizer que ser virgem era doentio, as recomendações dos pais e da Igreja, não tínhamos escolha".

“Os discursos e as instituições estavam atrasados em relação aos nossos desejos, mas o fosso entre o dizível da sociedade e o nosso indizível parecia-nos normal e irremediável".

 

O primeiro livro é de minha autoria: A Revolução da Verónica. Nunca me tinha acontecido sentir tão grande afinidade com um escritor, ou escritora. O mais interessante é que, quando comecei a ler o livro alheio, não o achei muito promissor.

Não comparo a qualidade da escrita. Aí, sinto-me como São João Baptista: não sou digna de lhe apertar as sandálias. Está em causa a comunhão de pensamentos, a complementação de ideias. E a escolha de palavras. Como “o fosso”. “Cada vez mais fundo”, num caso; “normal e irremediável”, no outro. Encaixam como duas peças de Lego.

Os Anos.jpg

         

 

Nota: plágio de ideias (da minha parte, claro), está fora de questão. Comecei a ler Os Anos, de Annie Ernaux, pela primeira vez, há dias. Por seu lado, A Revolução da Verónica existia há muito tempo, na minha gaveta. Na verdade, tentei, sem sucesso, publicá-lo por ocasião do 40º aniversário da Revolução de Abril. Acabou por acontecer apenas dez anos mais tarde.

Sem comentários: