Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de outubro de 2024

A origem do mirandês


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Fotografia de 1914

Deparei, há dias, com um vídeo do Professor Marco Neves sobre o mirandês, reconhecido como língua, pela Assembleia da República, há vinte e cinco anos. Infelizmente, tenho apenas este link do Instagram, não sei se há acesso ao vídeo por outro meio.

Costumo seguir os vídeos do linguista Marco Neves e este chamou-me particularmente a atenção, porque a língua mirandesa é algo que me tem ocupado, nos últimos anos, não tivesse eu uma boa costela transmontana – de “Trás-os-Montes Oriental”, acrescente-se, pois há grandes diferenças entre os distritos de Vila Real e de Bragança, incluindo os dialetos que se falavam nas aldeias.

O Professor Marco Neves vem clarificar um equívoco: muita gente pensa que o mirandês começou por ser um dialecto do português. Nada mais errado! Sabemos que o português e o galego têm a mesma origem. O mirandês, no entanto, pertence a um outro grupo linguístico, o asturo-leonês, uma variante situada, geograficamente, entre o galaico-português e o castelhano.

Acrescento (isto não vem no vídeo) que, à altura da formação de Portugal, Castela ainda não era o grande reino no qual se tornou mais tarde. O reino mais poderoso da Península Ibérica era Leão (ao qual pertencia o condado Portucalense). E, nesse reino, como é óbvio, não se falava castelhano, mas asturo-leonês. Esta língua acabou por desaparecer. Falava-se na região que, das Astúrias, descia para Zamora e Salamanca e espalhou-se ainda mais para Sul, enquanto o rei de Leão deu cartas na Reconquista. Leão acabou, porém, por ser engolido por Castela, com uma (grande) ajuda de Portugal. A independência da nossa nação foi-lhe fatal. Enquanto, a Leste, Castela se tornava cada vez mais poderosa, a expansão de Afonso Henriques para Sul impediu a progressão do malogrado reino para Ocidente. Enfim, o nome ficou eternizado na grande região espanhola de “Castilla-León”.

Tudo isto para dizer que, no Portugal dos primeiros séculos, em vastas regiões das terras de Bragança, não se falava o galego-português, mas o asturo-leonês. Tenho seguido com muito interesse este estudo, através de Rui Rendeiro Sousa. Natural de Macedo de Cavaleiros, dedica-se, há mais de trinta anos, à História do seu concelho, tendo já publicado livros sobre muitas freguesias.

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Carrapatas, anos 1960 (desconheço o autor da fotografia)

Rui Rendeiro Sousa afirma que a língua, hoje conhecida como mirandês, se falaria numa vasta região do atual distrito de Bragança. Esse idioma foi, ao longo dos séculos, sendo empurrado, pelo português, cada vez mais para Leste, até se limitar a uma pequena zona circunscrita (a de Miranda do Douro).

Uma coisa é certa: quando eu era criança, não entendia as pessoas da aldeia-natal do meu pai, com o curioso nome de Lombo. Quase nem entendia a minha própria avó. Falavam português, mas de uma maneira, digamos, estranha. Hoje, já quase ninguém fala assim. O sotaque transmontano continua a ser especial (não o confundam com o da faixa litoral Minho/Porto, não tem nada a ver), mas já nenhum português de outras paragens tem dificuldade em entender os naturais da região.

 

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Freguesia do Lombo, concelho de Macedo de Cavaleiros (fonte: página da freguesia no Facebook)

Acrescento palavras do próprio Rui Rendeiro Sousa, até porque ele consegue muito bem demonstrar uma maneira de falar única e que começou a desaparecer nos anos 70/80 do século passado. Estas palavras são excertos de textos que vai publicando no Facebook, na sua luta pela verdadeira identidade do que ele denomina de “Trás-os-Montes Oriental”. O primeiro vem a propósito de um artigo sobre a mania de os nortenhos trocarem os “vês” pelos “bês”, acrescentando-se: «No passado, o Norte de Portugal e a Galiza partilhavam a mesma língua, o galaico-português»:

Um Norte ao qual também tenho imenso orgulho em pertencer! Todavia, há dois «Nortes», geográfica, histórica, linguística, etnológica e etnograficamente. Por isso não dançamos por aqui o Vira Minhoto, nem Pauliteiros ou Caretos há pelo Norte Litoral… Mais orgulho ainda tenho em pertencer ao segundo dos «Nortes», o Interior, que nada tem a ver com o Litoral! E ainda mais orgulho tenho em pertencer a «Trás-os-Montes Oriental» denominação que se vem tornando tradição, no universo da historiografia, para designar, grosso modo, o território que corresponde ao actual distrito de Bragança!

No que respeita à publicação em causa, desconhecerá (naturalmente) a autora (e todos aqueles que a partilham), que pelas bandas do tal de «Trás-os-Montes Oriental», especificamente na tal de Terra Fria, não havia Galego-Português para ninguém (à excepção dos letrados da corte que para aqui vinham em públicos cargos). Havia, sim, um outro ramo, o Asturo-Leonês, do qual derivam os dialectos Riodonorês e Guadramilês, e a oficial Língua Mirandesa. Idioma este que até era o por aqui falado pelos nossos bisavós/trisavós… E no qual não há nenhuma troca de «vês» por «bês», ou o inverso, porque o alfabeto Mirandês nem sequer contempla a letra «v»! Dito de outra forma, enquanto a «Língua Fidalga», a norma-padrão Português, é uma evolução a partir do Galego-Português, a «Língua Charra», na qual se inclui o Mirandês e os dialectos com raízes aí, é uma evolução com origem no Asturo-Leonês.

 

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Fotografia de Artur Pastor (desconheço a data)

 

E a propósito da passagem, em 1884, do linguista Leite de Vasconcellos por Macedo de Cavaleiros:

Porque falavam os nossos “abós d’ua forma ztranha” e temos Pauliteiros em Salselas? [Salselas é uma outra freguesia do concelho de Macedo de Cavaleiros]

As “belhinhas” e medievais «Terras de Miranda» abrangiam, histórica e geograficamente, uma vasta extensão, que incluía, não só os concelhos de Miranda do Douro, Vimioso e Mogadouro, mas também uma grande parte dos concelhos de Bragança, Freixo, Moncorvo e… Macedo de Cavaleiros!!!

É por isso que (ainda) temos por cá Pauliteiros (os magníficos de Salselas!), e outros já tivemos…

Havia outras coisas, que ele [Leite de Vasconcellos] deixou magnificamente registadas. Nomeadamente a soberba essência dos nossos “abós”, os tais que falavam de uma forma “ztranha”. E é delicioso ver os apontamentos desse «básico» Homem que incluiu as Terras Macedenses no seu périplo, por cá andando “d’a cabalu’e n’ua burra”… E descansando numa hospedaria, que na altura era chamada de “stalaige”, porque os seus donos eram os “stalajadeirus’e” (e as “stalajadeiras’e”). E “habia deis im Macedu’e, pur’u menus’e”, não sabendo a qual dos dois terá solicitado repouso… Mas sei que, nessa época, pediu batatas para acompanhar o jantar e os convivas riram-se… Porque, a contrariar a realidade actual, na qual a “balula” é indissociável da nossa riquíssima gastronomia, nesse tempo dos nossos “abós/bisabós”, o digno tubérculo era produzido, quase exclusivamente, para “butare na bianda”… A dos “cutchinus’e”…

E “prontus’e”… Lá vou “intentandu’e” partilhar o tanto que “fêzu” o que “sêmus’e”, trazendo por aqui o muito que guarda uma terra que até já foi “mim piquerrutcha”…

Dizem, por «Terras de Miranda», no seu fantástico idioma, que também já foi o nosso, que têm imensa «proua an ser Mirandés». Deturpo-lhes a expressão, alterando-a para algo que melhor se me adapta, não a escrevendo em «Pertués», mas no original «Mirandés»: «proua an ser de Macedo de Cabalheiros»! Porque «ye a tierra adonde naci, a mie tierra»…

 

Castanhas assadas.jpg

Desconheço autor e data

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