Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

7 de outubro de 2024

Elena Ferrante

Há muito que não escrevo sobre as minhas leituras. Vou tentar recuperar esse tempo, começando com Elena Ferrante e a sua tetralogia napolitana, à volta da amizade entre Lenú e Lila.

 

Já aqui tinha expressado a minha opinião sobre os dois primeiros volumes: A Amiga Genial e História do Novo Nome. Sobre o primeiro, dizia eu:

 

"Lila é dominante, sempre à espera que os outros lhe façam as vontades e nunca perde a pose, mesmo que caia no ridículo; já Lenú tem pavor do ridículo, é do género submisso, deixa-se guiar e manipular pela amiga, invejando-a, ao mesmo tempo. Entre as duas desenvolve-se uma estranha dinâmica que as torna inseparáveis."

 

E sobre o segundo:

 

"Haverá quen tenha dificuldades em apreciar o estilo de escrita de Elena Ferrante, que conta ao pormenor situações quotidianas. Mas é precisamente isso que me encanta. As frustrações e os rancores criam-se nessas ações consideradas normais e que passam despercebidas. Ou melhor: esforçamo-nos para que passem despercebidas, menorizando a sua importância. No entanto, são elas que nos moem por dentro e nos levam a tomar atitudes estranhas a nós próprias (e próprios)."

 

Elena Ferrante põe-nos, de facto, em contacto com a vida real, numa escrita crua, sem poesia. As suas personagens, mulheres e homens, não se dividem entre boas e más, todas estão marcadas pelas disfuncionalidades de um bairro pobre e caótico, na Nápoles da segunda metade do século XX. A própria amizade, iniciada na infância, entre as duas mulheres, à volta das quais se centra o enredo, deixa muitos amargos de boca, por vezes até nos exaspera. A saga, porém, não se resume às suas peripécias. Este é igualmente o retrato do Sul de Itália, onde não faltam a pequena máfia de bairro e as lutas entre fascistas e comunistas, que incendiaram a década de 1970.

 

Passo, então, ao terceiro e quarto volumes:

 

 


Depois de Lila conseguir livrar-se de um casamento tóxico, cai em desgraça e vê-se na miséria, com uma criança nos braços, ao contrário do ex-marido, que leva a sua vida por diante, sem se preocupar com o filho e sem que ninguém estranhe que leve outra mulher para sua casa. Por seu lado, Lenú sai de Nápoles, tira um curso superior e faz um casamento dentro do elevado meio académico. Mas não se livra do seu passado. O reencontro com a sua paixão de infância e juventude é fatal. E, apesar de apenas ela haver realizado o sonho partilhado entre as duas, tornar-se uma escritora de sucesso, continua a sentir-se inferior à amiga. A simples ideia de que Lila escreveria livros melhores, se tivesse tido oportunidade de optar por essa via, fá-la duvidar de si própria. A dinâmica estranha existente entre as duas atinge níveis absurdos. Também por causa de um homem...

                         


 

O final da saga é difícil de digerir. Um acontecimento trágico deixa-nos com um nó na garganta. A isso se soma o envelhecimento e a desilusão. Pertencer a uma casta privilegiada não salva de um fim de vida amargo e solitário. Amores desencontrados, constatar haver pessoas capazes de nos enganarem quase uma vida inteira, porque não vimos o óbvio (ou não quisemos ver?). E a interessante pergunta: se, numa dada altura da nossa vida, não se tivesse dado determinado acaso, teríamos sido pessoas diferentes? Melhores? Elena Ferrante mantém-se fiel à sua premissa de nos pôr em contacto com a vida real. Sem paninhos quentes, nem finais telenovelescos. Tão-pouco nos mostra heróis e heroínas, vilãs e vilãos, gente boa e má. Todos temos um pouco de uns e de outros, dentro de nós.

Esta saga é uma obra magnífica.

 

 

 

 

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