Tal como nas suas obras anteriores, também neste livro,
Cristina Torrão leva-nos pela mão a um passeio pelo Portugal Medieval com todos
os seus encantos e terrores. Mais do que a conturbada situação política e militar
da época, está em cena o enquadramento mental, social e moral desse período,
salpicado por descrições objetivas e agradáveis dos usos e costumes da época.
Não se pense, no entanto, que este é um livro apenas sobre o
século XII; o que está em causa é muito mais que a formação de Portugal; é a
formação da mentalidade portuguesa, com todos os vícios e qualidades com que
hoje nos identificamos: a bondade natural do nosso povo, uma certa ingenuidade
que tanto conduz à solidariedade como à fácil assunção de comportamentos e
atitudes ditadas pela pressão social dos grupos privilegiados; em suma, é a
construção do nosso quadro mental que está em jogo neste livro.
Os usos e costumes da época são precisamente apresentados
como testemunho deste quadro mental. Por exemplo, as festas populares são momentos
de profunda religiosidade, de humilde submissão aos ditames da santa madre igreja,
ao mesmo tempo que são ocasião para as mais profanas diversões, onde tudo
funciona como uma catarse social face ao rígido quadro de valores imposto pela
moral cristã que mais não é que uma forma de submissão do povo aos ditames do
poder. A festa religiosa tal como nos é descrita neste livro assume portanto um
caráter ambivalente onde a religiosidade tem o seu contraponto na extroversão
de atitudes mentais reprimidas.
Ao contrário do que acontece nos livros anteriores da autora,
o acento tónico é colocado no povo, enquadrado numa sociedade de ordens
fortemente estratificada. No topo da pirâmide, o alto clero, que rodeia o poder
político e o condiciona. Ao lado desta elite eclesiástica, os fidalgos, a
nobreza terratenente que nasceu da elite guerreira constituída pelos líderes
dos exércitos cristãos, compensados, também eles, pelo poder político pela
doação de terras. Por outro lado, o povo é constituído por uma maioria de
pobres vivendo do trabalho agrícola nas terras dos “filhos de algo”, os nobres,
e por uma minoria de pequenos proprietários como Ataúlfo, o pai de Jacinta.
A rigidez desta sociedade, bem como o conservadorismo
extremo que a sua manutenção implicava, conduz a maioria da população a um
estado de miséria social e, por outro lado, à manutenção de um quadro mental
fundado sobre a ignorância e o preconceito. Portanto, a vida conturbada de
Jacinta, o esmagamento da sua personalidade enquanto mulher e ser humano tem
muito menos a ver com as precárias condições de vida do que com esse quadro
mental de obscurantismo e preconceito, funcionando como verdadeiros alicerces
de um quadro social que se pretende cimentar.
Um dos temas fundamentais do livro é constituído pela
abordagem da condição feminina, num mundo em que o masculino é preponderante a
vários níveis. Mas o papel da mulher na sociedade medieval não é apenas
secundário; ela é frequentemente associada às forças demoníacas, por via do pecado
de Eva que constitui um estigma para toda a condição feminina. O próprio aborto
provocado é de certa forma justificado porque o pecado mortal estava já
cometido e o inferno era o destino incontornável. Dessa forma o aborto apenas
confirmava o triunfo de Lúcifer. Esta associação de ideias entre a mulher e o
diabo justifica também uma outra prática cujo papel é fulcral no mundo medieval
– a bruxaria. O papel da bruxa é ambivalente: por um lado ela é o protótipo da
mulher pecadora, condenada e amaldiçoada. Por outro ela é a salvadora; aquela
que tem poder para expulsar o próprio demónio.
No entanto, há estratégias de superação deste bloqueio
mental; e Jacinta procurar-as desesperadamente. Segundo a bruxa, as únicas
mulheres que conseguem escapar a esta pressão social eram as monjas e as próprias
bruxas, precisamente aquelas que optavam de forma voluntária pela solidão. A
solidão voluntária é uma via de libertação.
Na verdade, o tema da bruxaria é um dos mais complexos na
historiografia medieval – se, por um lado, é reconhecido à bruxa o poder de
afastar o próprio diabo, por outro, elas próprias são associadas ao demónio,
sendo perseguidas e condenadas por isso.
A autoexclusão social é, portanto, uma forma de escapar a
todas aquelas constrições sociais. O mosteiro surge aqui como um espaço de
liberdade mas também de tolerância; só aí Jacinta encontra a paz interior
porque só aí lhe é permitida uma identidade, uma autonomia enquanto ser humano
livre e pensante. A própria oração é encarada por Jacinta como um momento de
escape e de reencontro consigo própria; como se o verdadeiro Deus existisse
dentro dela, no seu espírito e não como um ente superior e castigador.
É genial a forma como a autora estabelece um paralelismo
entre Joana, a irmã monja de Jacinta e a soldadeira moura Zaida: duas
personagens só aparentemente opostas, uma freira e uma prostituta, duas
mulheres livres que conseguiram levar a paz ao coração de Jacinta.
Mas o preço da independência pessoal é sempre elevado:
Joana, Zaida e a bruxa conseguiram essa rara autonomia, essa paz interior, mas
tiveram de prescindir de algo: Joana prescindira dos sentimentos; a bruxa da
sua identidade social e Zaida prescindira do próprio corpo. Para ser livre é
preciso abdicar de algo. Na verdade, se o mundo humano, com as suas
contradições e injustiças é uma ameaça permanente à paz de espírito, o amor não
o é menos, apresentando-se como uma fonte de tormentos e de conflitos
interiores. Mesmo que disfarçado de idílio e sonho, o Amor é uma vigorosa e
trágica fonte de sofrimento e de dependência.
O talento literário de Cristina Torrão radica no seu estilo
objetivo, cinematográfico, como já o adjetivei a propósito de obras anteriores,
mas não é só isso. Há nas suas obras um humanismo notável, uma sensibilidade
apurada mas também uma dimensão de análise psicológica profunda, uma capacidade
de entrar na mente das personagens, a fazer lembrar grandes mestres neste
domínio como Dostoievski ou James Joyce.
Lá na "estante" do Manuel Cardoso, coloquei um comentário onde de forma sintética, expressei a minha opinião acerca dos "segredos da Jacintinha": «Subscrevo inteiramente a análise que o Manuel Cardoso faz, dos "Segredos de Jacinta". E realço as reflexões "filosóficas" que nele se acham. Com elas, enquadradas num contexto intemporal, o leitor é "levado" quase sem notar, a refletir também.
ResponderEliminarEntre várias, permito-me transcrever aquela com que estes "segredos" se encerram (mantendo-se contudo em aberto, esta estória terá continuação´, nas vidas de todos nós). «-Que bem dito, minha irmã! Vejo que estás tão próxima de Deus quanto eu. Só foi pena que tivesses de padecer tanto, antes de encontrares a tua verdadeira vida.
-Não tenhas pena! Se eu não houvesse batido tão fundo, não saberia avaliar o padecimento dos outros e a força que guardamos dentro de nós, que nos faz erguer nos momentos mais difíceis. Sei o que é o desespero, a solidão, estive às portas da morte... Essa sabedoria pôs-me forte, aprendi que temos de ser nós próprios a criar a nossa felicidade, a encontrar o nosso caminho.»
Quem consegue escrever e descrever desta forma, possui dentro de si imensa sabedoria e sensibilidade para entender as coisas do mundo e dos Homens.»
Foi esta impressão que me ficou, ao terminar a leitura deste romance.
Muito obrigada, Bartolomeu :)
ResponderEliminar