Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

6 de julho de 2014

Opinião de Manuel Cardoso

Reproduzo a opinião de Manuel Cardoso sobre Os Segredos de Jacinta, publicada no Dos Meus Livros:


Tal como nas suas obras anteriores, também neste livro, Cristina Torrão leva-nos pela mão a um passeio pelo Portugal Medieval com todos os seus encantos e terrores. Mais do que a conturbada situação política e militar da época, está em cena o enquadramento mental, social e moral desse período, salpicado por descrições objetivas e agradáveis dos usos e costumes da época.
Não se pense, no entanto, que este é um livro apenas sobre o século XII; o que está em causa é muito mais que a formação de Portugal; é a formação da mentalidade portuguesa, com todos os vícios e qualidades com que hoje nos identificamos: a bondade natural do nosso povo, uma certa ingenuidade que tanto conduz à solidariedade como à fácil assunção de comportamentos e atitudes ditadas pela pressão social dos grupos privilegiados; em suma, é a construção do nosso quadro mental que está em jogo neste livro.
Os usos e costumes da época são precisamente apresentados como testemunho deste quadro mental. Por exemplo, as festas populares são momentos de profunda religiosidade, de humilde submissão aos ditames da santa madre igreja, ao mesmo tempo que são ocasião para as mais profanas diversões, onde tudo funciona como uma catarse social face ao rígido quadro de valores imposto pela moral cristã que mais não é que uma forma de submissão do povo aos ditames do poder. A festa religiosa tal como nos é descrita neste livro assume portanto um caráter ambivalente onde a religiosidade tem o seu contraponto na extroversão de atitudes mentais reprimidas.
Ao contrário do que acontece nos livros anteriores da autora, o acento tónico é colocado no povo, enquadrado numa sociedade de ordens fortemente estratificada. No topo da pirâmide, o alto clero, que rodeia o poder político e o condiciona. Ao lado desta elite eclesiástica, os fidalgos, a nobreza terratenente que nasceu da elite guerreira constituída pelos líderes dos exércitos cristãos, compensados, também eles, pelo poder político pela doação de terras. Por outro lado, o povo é constituído por uma maioria de pobres vivendo do trabalho agrícola nas terras dos “filhos de algo”, os nobres, e por uma minoria de pequenos proprietários como Ataúlfo, o pai de Jacinta.
A rigidez desta sociedade, bem como o conservadorismo extremo que a sua manutenção implicava, conduz a maioria da população a um estado de miséria social e, por outro lado, à manutenção de um quadro mental fundado sobre a ignorância e o preconceito. Portanto, a vida conturbada de Jacinta, o esmagamento da sua personalidade enquanto mulher e ser humano tem muito menos a ver com as precárias condições de vida do que com esse quadro mental de obscurantismo e preconceito, funcionando como verdadeiros alicerces de um quadro social que se pretende cimentar.
Um dos temas fundamentais do livro é constituído pela abordagem da condição feminina, num mundo em que o masculino é preponderante a vários níveis. Mas o papel da mulher na sociedade medieval não é apenas secundário; ela é frequentemente associada às forças demoníacas, por via do pecado de Eva que constitui um estigma para toda a condição feminina. O próprio aborto provocado é de certa forma justificado porque o pecado mortal estava já cometido e o inferno era o destino incontornável. Dessa forma o aborto apenas confirmava o triunfo de Lúcifer. Esta associação de ideias entre a mulher e o diabo justifica também uma outra prática cujo papel é fulcral no mundo medieval – a bruxaria. O papel da bruxa é ambivalente: por um lado ela é o protótipo da mulher pecadora, condenada e amaldiçoada. Por outro ela é a salvadora; aquela que tem poder para expulsar o próprio demónio. 
No entanto, há estratégias de superação deste bloqueio mental; e Jacinta procurar-as desesperadamente. Segundo a bruxa, as únicas mulheres que conseguem escapar a esta pressão social eram as monjas e as próprias bruxas, precisamente aquelas que optavam de forma voluntária pela solidão. A solidão voluntária é uma via de libertação.
Na verdade, o tema da bruxaria é um dos mais complexos na historiografia medieval – se, por um lado, é reconhecido à bruxa o poder de afastar o próprio diabo, por outro, elas próprias são associadas ao demónio, sendo perseguidas e condenadas por isso.
A autoexclusão social é, portanto, uma forma de escapar a todas aquelas constrições sociais. O mosteiro surge aqui como um espaço de liberdade mas também de tolerância; só aí Jacinta encontra a paz interior porque só aí lhe é permitida uma identidade, uma autonomia enquanto ser humano livre e pensante. A própria oração é encarada por Jacinta como um momento de escape e de reencontro consigo própria; como se o verdadeiro Deus existisse dentro dela, no seu espírito e não como um ente superior e castigador.
É genial a forma como a autora estabelece um paralelismo entre Joana, a irmã monja de Jacinta e a soldadeira moura Zaida: duas personagens só aparentemente opostas, uma freira e uma prostituta, duas mulheres livres que conseguiram levar a paz ao coração de Jacinta.
Mas o preço da independência pessoal é sempre elevado: Joana, Zaida e a bruxa conseguiram essa rara autonomia, essa paz interior, mas tiveram de prescindir de algo: Joana prescindira dos sentimentos; a bruxa da sua identidade social e Zaida prescindira do próprio corpo. Para ser livre é preciso abdicar de algo. Na verdade, se o mundo humano, com as suas contradições e injustiças é uma ameaça permanente à paz de espírito, o amor não o é menos, apresentando-se como uma fonte de tormentos e de conflitos interiores. Mesmo que disfarçado de idílio e sonho, o Amor é uma vigorosa e trágica fonte de sofrimento e de dependência.
O talento literário de Cristina Torrão radica no seu estilo objetivo, cinematográfico, como já o adjetivei a propósito de obras anteriores, mas não é só isso. Há nas suas obras um humanismo notável, uma sensibilidade apurada mas também uma dimensão de análise psicológica profunda, uma capacidade de entrar na mente das personagens, a fazer lembrar grandes mestres neste domínio como Dostoievski ou James Joyce.


2 comentários:

  1. Lá na "estante" do Manuel Cardoso, coloquei um comentário onde de forma sintética, expressei a minha opinião acerca dos "segredos da Jacintinha": «Subscrevo inteiramente a análise que o Manuel Cardoso faz, dos "Segredos de Jacinta". E realço as reflexões "filosóficas" que nele se acham. Com elas, enquadradas num contexto intemporal, o leitor é "levado" quase sem notar, a refletir também.
    Entre várias, permito-me transcrever aquela com que estes "segredos" se encerram (mantendo-se contudo em aberto, esta estória terá continuação´, nas vidas de todos nós). «-Que bem dito, minha irmã! Vejo que estás tão próxima de Deus quanto eu. Só foi pena que tivesses de padecer tanto, antes de encontrares a tua verdadeira vida.
    -Não tenhas pena! Se eu não houvesse batido tão fundo, não saberia avaliar o padecimento dos outros e a força que guardamos dentro de nós, que nos faz erguer nos momentos mais difíceis. Sei o que é o desespero, a solidão, estive às portas da morte... Essa sabedoria pôs-me forte, aprendi que temos de ser nós próprios a criar a nossa felicidade, a encontrar o nosso caminho.»
    Quem consegue escrever e descrever desta forma, possui dentro de si imensa sabedoria e sensibilidade para entender as coisas do mundo e dos Homens.»
    Foi esta impressão que me ficou, ao terminar a leitura deste romance.

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