«Sempre dissemos várias coisas, mas
raramente com empatia, ou com espontaneidade, ou somente com simplicidade.
Tivemos sempre uma relação amargurada com o que não conseguíamos ser. Tivemos
sempre uma relação forçada, exigente, artificial. E, naquela cama de hospital,
prestes a enfrentar um dos desafios mais duros da minha vida, decidi prescindir
desse desgaste adicional. Precisaria de concentrar a totalidade das minhas
forças no tratamento do cancro. E foi por isso que, por minha decisão
exclusiva, contrariando todos os pedidos e intenções da parte dele, nunca me
encontrei com o meu pai durante os tratamentos. Nem me encontrei depois. E,
neste meu radicalismo, talvez tenha, finalmente, aprendido a viver sem a
presença física de um pai e de uma mãe (p. 202)».
Esta passagem é emblemática deste livro
de Paulo M. Morais, ou seja, mais do que o relato de uma doença, trata-se de
uma reflexão sobre a vida. Há momentos em que, para sobreviver, temos de nos
libertar de cargas supérfluas, mesmo que isso signifique quebrar com aquilo que
a nossa sociedade considera sagrado. No nosso medo de magoar os outros, muitas
vezes, deixamos que nos magoem para lá do suportável, o que implica uma
subvalorização de nós próprios. Ninguém vai longe, nessa maneira de viver, normalmente
cai numa depressão profunda. Há alturas em que temos de impor um limite,
alturas em que temos de arranjar coragem para o impor.
Não se pense, porém, que Paulo M. Morais
aproveita a doença para se livrar de quem o incomoda. Noutros casos, acontece o
contrário: ele aproxima-se ainda mais de quem ama, porque amar é um bálsamo, em
qualquer situação da vida… Desde que se seja correspondido. O verdadeiro amor
traz alegria, motivação, vontade de viver, mesmo no enfrentar de dificuldades.
Quando as pessoas que pensamos que nos amam nos põem tristes e amargurados, é
claro que a relação nos prejudica mais do que ajuda. Não pode ser amor!
Gostei muito de ler este livro, embora
tenha encontrado passagens (poucas) menos interessantes. É um livro útil. Para
quem ainda não teve contacto com um cancro, ele põe-nos a par dessa faceta da
vida. Por outro lado, poderá ajudar quem se debata com a doença ou acompanhe
alguém que o faça. E, em qualquer dos casos, leva-nos a refletir sobre nós
próprios, sobre a própria vida.
Nesta altura emblemática, em que se está prestes a iniciar um novo ano, desejo ao autor a continuação do sucesso e que continue a escrever livros que nos façam pensar!