Este é um livro
interessantíssimo, na sua mensagem, mas cujo contexto não deve ser levado
demasiado à letra.
A mensagem é mais
atual do que nunca: tiranias e ditaduras baseiam-se no medo! Quando as pessoas
se sentem fracas e ameaçadas, seguem sem reservas a figura que lhes promete
aniquilar o monstro. Se o monstro existe, ou não, é indiferente; como é
indiferente se, existindo, ele é de facto ameaçador, ou responsável pela
situação difícil que se vive. Importante é que se acredite nele e na força da
figura que garante poder aniquilá-lo. Indiferente é também de que meios essa
figura tirânica se serve. Crimes são cometidos e legitimados em nome da
segurança. Isto é uma perfeita alegoria do que se vive atualmente e serve de
matéria de reflexão.
Com o contexto criado
pelo autor é que me parece que devemos ter muito cuidado, não tirando
conclusões precipitadas, como a que li algures num comentário, já não sei em
que blogue, nem por quem proferido: O Deus das Moscas seria a prova de
que os seres humanos são maus por natureza, contrariando a teoria do bom
selvagem de Rousseau.
Não querendo agora
entrar em discussões filosóficas, lembro que uma obra de ficção não pode provar
coisa nenhuma! William Golding não apresenta os resultados de um estudo, ou de
uma experiência. O enredo por si criado nem sequer é baseado em factos reais.
Seria de facto
interessante ver como um grupo de crianças, ainda não corrompido pela
sociedade, sobreviveria numa ilha deserta. Lamento, porém, que essa experiência
seja impossível. Só recém-nascidos ou bebés muito pequenos não foram ainda demasiado
influenciados pelo mundo à sua volta. E estes não estão em condições de
sobreviver sozinhos, seja onde for.
Qualquer criança, ou
jovem, que seja capaz de sobreviver sem ajuda, já não é puro, ou seja, já foi
educado e influenciado de alguma maneira, possui certos conceitos e uma visão
do mundo que lhe foi transmitida. Mais: uma criança de doze anos pode até
pensar ser o contrário daquilo que verdadeiramente é, ou seja, pode atuar com
crueldade, sendo bom por natureza; pode ser submissa, tendo qualidades de
liderança por natureza; pode ser sossegada, sendo ativa por natureza; pode ter
as ideias bloqueadas, sendo criativa por natureza, etc. Ou o seu contrário.
Tudo depende da educação que levou, das suas vivências e experiências. Um rapaz
que nasça pobre tem, aos doze anos, uma visão do mundo bem diferente da de um
rapaz que nasça rico.
O próprio autor alude
a vivências que tenham definido o comportamento das suas personagens:
«Ainda assim, a
tradição norte-europeia de trabalho, diversão e alimento ao longo do dia todo
possibilitou que eles se adaptassem inteiramente àquele novo ritmo» (p 68).
«Percival tinha cor
de rato e nem a mãe o achara muito atraente» (p 69) - o suficiente para modelar,
na negativa, o carácter de um miúdo desde o nascimento.
«Só Percival começou
a choramingar, com areia num olho, e Maurice bateu em retirada. Na sua outra
vida, Maurice fora, certa vez, castigado por encher de areia a vista de um
miúdo mais novo. Agora, apesar de não estar presente qualquer pai para fazer
tombar sobre ele a mão pesada, Maurice continua a sentir o desconforto de ter
feito uma maldade» (p 69).
Recordemos ainda que
estes jovens e crianças são o fruto da educação autoritária inglesa dos anos
1950. Além disso, o miúdo que se torna tirano tem um historial de liderança,
antes de se ver preso naquela ilha. Ele é o chefe de um coro, um grupo que se rege por normas de modelo militar, farda inclusive. O rapaz está habituado a
que lhe obedeçam cegamente, sem o questionarem, o que, por si só, pode levar a
situações de abuso, seja em que contexto for.
Ou seja: um livro interessante, que dá vários motivos de reflexão, mas que não se pode usar sem reservas como modelo da realidade.