Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

31 de março de 2017

Dentro da Noute: Contos Góticos

O Projecto Adamastor dedica-se à publicação de clássicos em língua portuguesa, em formato digital, permitindo descarregá-los gratuitamente. Já por várias vezes utilizei esse serviço, a fim de ler, ou reler, obras de, por exemplo, Eça de Queirós, Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco (encontram os links na minha lista de Leituras).

Recentemente, o Projecto Adamastor pôs à disposição uma antologia de contos góticos de autores portugueses e brasileiros. Dela fazem parte os três autores já citados, mas só conheço o excelente O Defunto, de Eça de Queirós. Esta é uma boa oportunidade para ler ainda Florbela Espanca, Raul Brandão, Bernardo Guimarães, Machado de Assis e muitos outros.

Tem-se acesso à lista de autores e seus contos antes de se fazer o download. Eu já fiz o meu!






22 de março de 2017

Valorizar a família


«Criar um porco contribui para o PIB, criar uma criança não».*

Ao ler recentemente estas palavras de Friedrich List, um economista alemão do século XIX, lembrei-me do artigo que escrevi para a edição de Março do PORTUGAL POST, o único jornal para a comunidade portuguesa na Alemanha. Nesta edição dedicada às mulheres, o Diretor Mário Santos pediu-me para lhe enviar um pequeno texto sobre a minha experiência como escritora. Por razões que nem sempre sabemos nomear, acabei por fugir ao tema, concentrando-me na pouca valorização que a família tem na nossa sociedade.



Este problema, porém, não é novo, ao contrário do que se possa pensar. Não me refiro à coesão artificial dos laços familiares que existem por imposição, tipo dogma, mesmo entre parentes que se odeiam. Refiro-me mais ao pouco valor dado ao criar e tratar de crianças. A fim de cumprir os seus compromissos profissionais, os pais deixam, muitas vezes, os filhos pequenos a cargo de pessoas mal qualificadas. Persiste a crença de que qualquer mulher (pela mera possibilidade de ser mãe) sabe tratar de crianças e educá-las convenientemente.

Nada mais enganoso! Falamos de uma tarefa de alta responsabilidade. Se criar uma criança significasse apenas lavá-la, alimentá-la e dar-lhe um teto, elas bem podiam crescer todas em lares. O problema é que a sociedade parece considerar qualquer outro trabalho superior a esse, tornando-se quase um castigo ficar em casa a tratar dos filhos, das limpezas e das refeições, tarefas consideradas inferiores, degradantes e, talvez, por isso mesmo, mais próprias de mulheres. No entanto, o trabalho num matadouro, por exemplo, ou numa fábrica de produção em série, não me parece mais satisfatório, ou gratificante. Porque se considera superior o facto de se estar numa fábrica a apertar parafusos todo o dia, em relação a mudar fraldas e dar de comer a um bebé?

Na Alemanha, onde os ordenados o permitem, é frequente uma mulher prescindir do seu trabalho remunerado para ficar em casa durante alguns anos, depois de ter filhos. Apesar de a lei permitir que os homens façam o mesmo, uma percentagem ínfima de pais decide-se por esta opção. Há ainda muito preconceito em relação a um casal que decide inverter os papéis. Para que houvesse realmente uma mudança de mentalidades, as tarefas caseiras deviam ser valorizadas, ser alvo de consideração social. E talvez também remuneradas. Afinal, ao proporcionar uma boa infância às suas crianças, o Estado está a investir no futuro.

Toda a família devia ser valorizada, independentemente da sua forma, ou modelo. Mais do que fazer a apologia da família tradicional, proponho um olhar diferente para as pessoas que tratam dos filhos e da casa, sejam homens ou mulheres. Em vez de piedade, ou condescendência, reservemos-lhes respeito e consideração!

Também o mercado de trabalho se devia adaptar ao conceito de família, tomar consciência de que não é indiferente quem trata das crianças e proporcionar condições para que as pessoas que regressam mais cedo a casa, ou mesmo se vejam forçadas a cancelarem compromissos, por causa dos filhos, não sejam olhadas de forma desaprovadora. As crianças precisam dos pais (biológicos, ou não). Para os homens e mulheres que prescindem temporariamente da sua atividade profissional, o regresso ao mercado de trabalho devia ser facilitado, independentemente das suas idades. Os horários laborais deviam igualmente ser mais flexíveis, de acordo com as necessidades das famílias, assim como deveria haver mais possibilidades de trabalhar em part-time. As crianças são o espelho da família. Pais felizes significa filhos felizes; crianças de pais stressados e/ou descontentes refletem o ambiente que têm em casa e são elas próprias sérias candidatas a adultos depressivos.

A sociedade subestima a educação das crianças. Costuma-se dizer: «elas não morrem por não terem os pais perto delas. Lá se criam». Na minha opinião, porém, nada se compara a uma infância bem estruturada e apoiada, na companhia de pais que realmente têm tempo para os filhos. Costumo dizer que a única coisa que pode mudar o mundo são infâncias felizes.


* Citado por Thomas Sternberg, Presidente do Comité Central dos Católicos Alemães (Zentralkomitee der deutschen Katholiken), na KirchenZeitung de 5 de Março de 2017.
 Frase no original: Das Großziehen eines Schweins trägt zum Bruttosozialprodukt bei, die Erziehung eines Kindes nicht.


19 de março de 2017

Errar é humano...


Estando a ler esta magnífica obra de Saramago, encontrei dois erros históricos que muito me surpreenderam. Que o escritor se engane, pode acontecer. Mesmo sendo um talento fora do comum, ele é humano como qualquer um de nós. O que mais me admira é que ainda nenhum/a editor/a ou revisor/a tenha dado conta destes erros. Afinal, Saramago é publicado por quem sabe da poda (ou devia saber)!

Considero um dos erros particularmente grave, pois tem a ver com literatura ao mais alto nível, nomeadamente, com Shakespeare. Cito da página 266 (3ª edição LeYa BIS, novembro de 2013):

«Se ainda me restasse uma hora de vida, talvez a trocasse agora por um café bem quente, Daria mais do que aquele rei Henrique, que por um cavalo só trocava o reino, Para não perder o reino, mas deixe lá a história dos ingleses e diga-me como vai este mundo dos vivos».

Saramago reporta-se a uma peça de Shakespeare, na qual um determinado rei perde o seu cavalo em plena batalha e clama: "A horse, a horse, my kingdom for a horse"! O problema é que esse rei não se chamava Henrique, mas sim Ricardo! Toda agente se pode enganar num nome, sim. Mas o nome em questão serve de título à própria peça: Richard III, uma das mais famosas obras de Shakespeare! A primeira edição deste livro de Saramago data de 1984. E, desde aí, ainda nenhum editor português deu pelo erro? E as traduções (nomeadamente em inglês) ostentam também o erro? Valha-me Deus!

E já que falamos em Deus, passemos ao segundo lapso. Cito da página 268:

«... desde que os hebreus promoveram Deus ao generalato, chamando-lhe senhor dos exércitos, o mais têm sido meras variantes do tema, É verdade, os árabes invadiram a Europa aos gritos de Deus o quer».

Na verdade, esse era o grito dos cruzados, em latim: "Deus lo vult"! Segundo diz a lenda, o povo assim terá respondido, quando o papa Urbano II, no Concílio de Clermont-Ferrand, em 1095, convocou os cristãos a uma guerra contra os muçulmanos, a fim de reconquistar Jerusalém. Assim se iniciaram-se as cruzadas, a primeira em 1099, seguindo-se muitas outras.


Tratando-se de uma obra do único escritor português premiado com um Nobel, achei que tais erros não podiam passar, mais uma vez, despercebidos. Espero que se corrijam, em edições posteriores!


8 de março de 2017

O Deus das Moscas





Este é um livro interessantíssimo, na sua mensagem, mas cujo contexto não deve ser levado demasiado à letra.

A mensagem é mais atual do que nunca: tiranias e ditaduras baseiam-se no medo! Quando as pessoas se sentem fracas e ameaçadas, seguem sem reservas a figura que lhes promete aniquilar o monstro. Se o monstro existe, ou não, é indiferente; como é indiferente se, existindo, ele é de facto ameaçador, ou responsável pela situação difícil que se vive. Importante é que se acredite nele e na força da figura que garante poder aniquilá-lo. Indiferente é também de que meios essa figura tirânica se serve. Crimes são cometidos e legitimados em nome da segurança. Isto é uma perfeita alegoria do que se vive atualmente e serve de matéria de reflexão.

Com o contexto criado pelo autor é que me parece que devemos ter muito cuidado, não tirando conclusões precipitadas, como a que li algures num comentário, já não sei em que blogue, nem por quem proferido: O Deus das Moscas seria a prova de que os seres humanos são maus por natureza, contrariando a teoria do bom selvagem de Rousseau.

Não querendo agora entrar em discussões filosóficas, lembro que uma obra de ficção não pode provar coisa nenhuma! William Golding não apresenta os resultados de um estudo, ou de uma experiência. O enredo por si criado nem sequer é baseado em factos reais.

Seria de facto interessante ver como um grupo de crianças, ainda não corrompido pela sociedade, sobreviveria numa ilha deserta. Lamento, porém, que essa experiência seja impossível. Só recém-nascidos ou bebés muito pequenos não foram ainda demasiado influenciados pelo mundo à sua volta. E estes não estão em condições de sobreviver sozinhos, seja onde for.

Qualquer criança, ou jovem, que seja capaz de sobreviver sem ajuda, já não é puro, ou seja, já foi educado e influenciado de alguma maneira, possui certos conceitos e uma visão do mundo que lhe foi transmitida. Mais: uma criança de doze anos pode até pensar ser o contrário daquilo que verdadeiramente é, ou seja, pode atuar com crueldade, sendo bom por natureza; pode ser submissa, tendo qualidades de liderança por natureza; pode ser sossegada, sendo ativa por natureza; pode ter as ideias bloqueadas, sendo criativa por natureza, etc. Ou o seu contrário. Tudo depende da educação que levou, das suas vivências e experiências. Um rapaz que nasça pobre tem, aos doze anos, uma visão do mundo bem diferente da de um rapaz que nasça rico.

O próprio autor alude a vivências que tenham definido o comportamento das suas personagens:

«Ainda assim, a tradição norte-europeia de trabalho, diversão e alimento ao longo do dia todo possibilitou que eles se adaptassem inteiramente àquele novo ritmo» (p 68).

«Percival tinha cor de rato e nem a mãe o achara muito atraente» (p 69) - o suficiente para modelar, na negativa, o carácter de um miúdo desde o nascimento.

«Só Percival começou a choramingar, com areia num olho, e Maurice bateu em retirada. Na sua outra vida, Maurice fora, certa vez, castigado por encher de areia a vista de um miúdo mais novo. Agora, apesar de não estar presente qualquer pai para fazer tombar sobre ele a mão pesada, Maurice continua a sentir o desconforto de ter feito uma maldade» (p 69).

Recordemos ainda que estes jovens e crianças são o fruto da educação autoritária inglesa dos anos 1950. Além disso, o miúdo que se torna tirano tem um historial de liderança, antes de se ver preso naquela ilha. Ele é o chefe de um coro, um grupo que se rege por normas de modelo militar, farda inclusive. O rapaz está habituado a que lhe obedeçam cegamente, sem o questionarem, o que, por si só, pode levar a situações de abuso, seja em que contexto for.

Ou seja: um livro interessante, que dá vários motivos de reflexão, mas que não se pode usar sem reservas como modelo da realidade.


4 de março de 2017

Saudade, Desbundar, Desenrascanço



Não parece, mas estas palavras têm algo em comum: considera-se que são intraduzíveis. Pelo menos, assim o diz Tim Lomas, da Universidade de Londres.

Que a palavra saudade não tem tradução literal noutras línguas, já era conhecido - embora eu duvide; ou melhor, chamo a atenção para o facto de que a dificuldade de tradução não implica que os naturais de outros países não saibam o que é ter saudades, ou não conheçam o sentimento ligado à saudade.

Esta dificuldade de tradução costuma deixar-nos muito orgulhosos, pois a saudade, tendo um conceito muito poético, torna-se própria de um país de poetas. Mas que dizer de desbundar e desenrascanço? São muito portuguesas, mas não são poéticas. Enfim, só prova que temos outras características, o que é muito bom.

Não se pense, porém, que somos o único povo do mundo a ter palavras intraduzíveis (uma outra característica nossa é pensarmos constantemente que somos os únicos ou os melhores do mundo nisto ou naquilo; é pena não haver uma palavra que defina isso mesmo). O estudo de Tim Lomas encontrou palavras dessas em muitas línguas. É o caso do termo filipino Kilig, ou da palavra holandesa Uitwaaien, ou ainda do termo do dialeto africano Bantu Mbuki-mvuki. Para ficarem a saber os seus significados, cliquem nelas!

Este estudo encontrou também uma palavra alemã difícil de traduzir: Sehnsucht, um termo que considero aliás muito próximo da nossa saudade. 


1 de março de 2017

Ainda a influência do Estado Novo


Neste interessante artigo, mais uma vez se confirma que os mitos históricos criados e/ou alimentados pelo Estado Novo continuam a dominar o nosso imaginário coletivo. Nas palavras da historiadora Ana Maria Rodrigues: «Ainda estamos muito influenciados pela história do Estado Novo, pois os reis e rainhas de que mais se gosta ainda são os mesmos que se elogiavam na instrução primária há 50 anos».

Pergunto-me se os programas escolares continuam a ser responsáveis por esta situação. As historiadoras Ana Maria Rodrigues, Manuela Santos Silva e Ana Leal de Faria, que também são professoras, culpam mais os autores de romances históricos, o que me entristece, pois um dos meus objetivos, ao escrever ficção histórica, é precisamente acabar com esses mitos, baseando-me nos mais recentes estudos.

Preocupadas com a verdade histórica, estas três historiadoras coordenam a série Casamentos da Família Real Portuguesa, publicada pelo Círculo de Leitores e que vai no seu segundo volume. O primeiro ocupa-se da época medieval até aos finais do século XVI; o segundo abrange os séculos XVII, XVIII e XIX.




É uma obra que me interessa, até porque as autoras «consideram que a história necessita de reinterpretações e é preciso acompanhar as novas correntes. Como a da recente que se preocupa com os afetos». Não posso, porém, deixar de me perguntar se estas novas correntes não são influenciadas pela ficção histórica. Se assim é, o romance histórico tem, pelo menos, as virtudes de contribuir para que o estudo da História se reinvente e se empenhe em acabar com certos mitos.