Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

30 de dezembro de 2019

O Juiz e o seu Carrasco



Considera-se o género policial como leitura de entretenimento, sem grande valor literário, embora haja autores de policiais que se conseguiram destacar pela sua qualidade, como o inglês Sir Conan Doyle, o belga Georges Simenon e talvez a igualmente britânica Agatha Christie. O suíço Friedrich Dürrenmatt, do qual já tinha lido a peça Os Físicos, encontra-se, sem sombra de dúvida neste patamar. O Juiz e o seu Carrasco, já passado a filme, foi inclusive leitura obrigatória no ensino secundário alemão (talvez ainda o seja, pelo menos, nalguns casos).

Não hesito em afirmar que é uma obra sublime, de grande sentido estético e, ao mesmo tempo, de leitura agradável. A partir do assassinato de um polícia de Berna numa pequena aldeia, desenvolve-se uma complicada trama, exigindo a intervenção do comissário Bärlach. O famoso criminalista vê-se confrontado com um antigo conhecido, outrora seu amigo, mas que, a partir de certa altura, decidiu usar a sua genialidade para praticar o mal (no fundo, um tema algo parecido com o abordado em Os Físicos). Bärlach há muito que deseja encarcerar esse seu “velho amigo”, exímio em cometer crimes, cuja autoria é impossível de provar. O comissário vê finalmente uma possibilidade de finalmente conseguir apanhar o outro em falso, ao mesmo tempo que descobre sofrer de doença incurável, pelo que o duelo se torna numa luta contra o tempo. O próprio Dürrenmatt classificou este seu livro como a «luta derradeira entre dois homens». Não obstante, o final toma um rumo inesperado…

Recomendo vivamente esta leitura que, no mercado português, parece estar apenas disponível na FNAC (em edição de bolso).


23 de dezembro de 2019

O Natal e os enjeitados

São cerca das 19h 30m, de uma sexta-feira, em Stade, a pequena cidade alemã onde vivo.  A escuridão é já completa, estamos em dezembro. A temperatura ronda os 5ºC e o vento forte faz salpicar a chuva miudinha no rosto dos transeuntes. O parque de estacionamento do pavilhão de eventos está quase vazio e um casal que foi convidado para jantar nas imediações aproveita para ali estacionar o carro.

Mal abrem as portas, ouvem o choro do bebé. A senhora admira-se por soar tão perto. Terão sido os pais de alguma criança obrigados a trocar as fraldas do filho no carro? Ou talvez uma mãe amamente o seu bebé. Tenta perscrutar algum sinal de vida dentro das poucas viaturas estacionadas, algum sinal de luz. Em vão. Apesar da chuva e do vento, resolve dar alguns passos na direção de onde lhe parece vir o choro. Numa das faixas de relva que permeiam o parque de estacionamento, vê um tecido cor-de-laranja enrodilhado debaixo de um arbusto. O local está mal iluminado, ela aproxima-se e mal acredita nos seus olhos: enrolado numa toalha de banho está um bebé pequenino, recém-nascido. O casal chama a emergência médica e a polícia. A menina é transportada para a maternidade do hospital.

Esta cena passou-se há três semanas. A menina, a quem o pessoal da maternidade deu o nome provisório de Luísa, encontra-se bem de saúde e foi entregue a uma família de acolhimento. A polícia continua à procura da mãe, ou dos pais, da bebé. Atente-se ao pormenor: as notícias não referem apenas a mãe. Não resisti a contar este episódio, depois de algo semelhante ser ter verificado há poucas semanas, em Lisboa. As notícias portuguesas, mesmo antes de se saber que a mãe era prostituta, referiam sempre andar-se à procura da “mãe”.

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Museu Casa da Roda, Torre de Moncorvo © 2016 Horst Neumann

O abandono de recém-nascidos é prática antiquíssima. Durante muitos séculos, existiu a roda dos expostos, ou dos enjeitados, numa tentativa de proporcionar algum futuro às crianças, ou mesmo evitar o infanticídio. As razões que levam as mães a cometerem acto tão chocante, ontem como hoje, são das mais variadas. Vão desde a prostituta ignorante (e talvez viciada em drogas e sem meios), a casos de incesto (pais que violam filhas, por exemplo) e mulheres pressionadas a livrarem-se do bebé, tanto pelo pai da criança, como pelos seus próprios familiares. Em todos os casos, porém, penso haver um factor comum: a mãe sente-se sozinha, ela própria abandonada, sem apoios de parte nenhuma, o que a torna incapaz de assumir a responsabilidade, ou a leva a recear a rejeição familiar. 

E, no entanto, nenhuma mulher engravida sozinha. Acho, por isso, profundamente injusto ser apenas a mãe a responsabilizada e a pagar pelo crime. A carga de culpa do pai é equivalente, ou maior ainda: ele não abandona apenas o filho, abandona também a mãe do seu filho. Mesmo que o pai ignore sê-lo, não deixa de partilhar a culpa, quanto mais não seja, por ter usado uma mulher como quem usa o sofá num momento de lazer.

A Suécia, esse país tão liberal, proibiu, há uns anos, a prostituição. Em caso de transgressão, não é a prostituta a autuada, mas o cliente! Afinal, ele não quer saber se a mulher que está a usar exerce a “profissão” por vontade própria ou por ser obrigada. Nem sequer se preocupa com o facto de ela poder engravidar, o que se tornou raro, nos nossos dias, mas não deixa de acontecer. A Alemanha, onde a prostituição é permitida e considerada, pelo menos, a nível legislativo, como outra profissão qualquer, tornou-se um paraíso para bordéis e tráfico humano, onde muitas jovens, normalmente oriundas do leste europeu, são mantidas à força (violência, chantagens) e, muitas vezes, se viciam em drogas para aguentarem a sua miséria. Enfim, um assunto que dá pano para mangas e que ficará para um próximo postal, até porque não sei se este caso está relacionado.

O que me levou a relatá-lo foi o facto de os dois casos (em Portugal e na Alemanha) terem ocorrido em época natalícia. Recordemos que no Natal se festeja o nascimento de uma criança. Cada vez mais me convenço de que é o nascimento em si o verdadeiro milagre do Natal. Todo o nascimento é um milagre, independentemente da maneira de como o bebé foi concebido. Apesar de ser católica, pergunto-me: porque é tão importante insistir na virgindade da mãe do menino? Porque é que uma mãe virgem há de valer mais do que as outras mães? Atentemos a que estamos a falar de uma mãe que apenas não está sozinha, porque o noivo decidiu ampará-la, mesmo sabendo não ser ele o pai do bebé. Pergunto-me se não será essa a verdadeira mensagem do Natal. Não será a função de São José, essa figura tão apagada, a mais importante de todas?

Ainda uma palavra de apreço para a senhora de Stade, que não descansou, enquanto não encontrou o bebé que chorava. Quantos de nós iriam à procura da origem do choro, numa noite de frio e chuva? Quantos de nós não encolhiam os ombros, virando as costas, pensando: “seja o que for, não é nada comigo”?

A pequena Luísa teve muita sorte. Espero que o seu anjinho-da-guarda a continue a proteger e a faça muito feliz!

Luisa 2019-12-14.jpg

Nota: Esta imagem foi copiada do jornal bissemanário local, datado do passado dia 14 de Dezembro. Vê-se o subtítulo: „Ainda não há pistas sobre a mãe” (Noch keine Hinweise auf die Mutter). No artigo, porém, encontra-se a frase: „Está por esclarecer quem é a mãe, ou quem são os pais” (Wer die Mutter bzw., die Eltern sind, ist ungeklärt).


Texto originalmente publicado aqui


14 de dezembro de 2019

Os Físicos




Os Físicos é uma hilariante peça teatral do suíço Friedrich Dürrenmatt (1921/1990), que escrevia em língua alemã. Talvez ele não seja atualmente muito conhecido no nosso país, mas vários romances e peças de Dürrenmatt foram adaptadas ao cinema. Um dos filmes mais conhecidos intitula-se A Visita (The Visit), realizado em 1964 e protagonizado por Ingrid Bergman e Anthony Quinn.

Caracterizei a peça Os Físicos como hilariante, pois ela está cheia de situações absurdas e cómicas, onde aliás impera o humor negro, o que torna a leitura muito agradável. No entanto, Os Físicos tematiza uma problemática nada risível: físicos geniais e suas descobertas, que tanto podem ser úteis à humanidade, como contribuir para a sua destruição, tudo dependendo das mãos em que cai esse saber. O ponto de partida é o facto de que, sem as descobertas de Einstein, a bomba atómica nunca seria possível. Dürrenmatt tinha 24 anos, quando Hiroxima e Nagasaki foram devastadas pela bomba atómica, ficando impressionado com o poder que o ser humano possui e os efeitos catastróficos que daí podem advir. Os Físicos desenrola-se uma clínica psiquiátrica, local de esconderijo de um cientista genial, na esperança de que o mundo nunca venha a ter contacto com as suas descobertas.

Não encontrei versão portuguesa à venda desta peça, embora ela seja, de vez em quando, levada à cena, como aconteceu, por exemplo, em 2017, na Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, e na Escola Alemã de Lisboa, a 8 de junho de 2018. Quem esteja interessado em lê-la em inglês pode adquiri-la na wook.pt.

Gostei tanto do estilo e da ironia de Friedrich Dürrenmatt, que lerei, de seguida, uma das suas obras mais famosas: O Juiz e o seu Carrasco.


6 de dezembro de 2019

A Angústia do Guarda-Redes Antes do Penalty




Peter Handke é o vencedor do Prémio Nobel da Literatura de 2019. Constatei que tinha este seu livro em casa (na versão original, em alemão), um dos seus contos mais conhecidos, talvez pelo título apelativo. Escusado será dizer que pouco tem a ver com futebol. A personagem principal, Josef Bloch, é um eletricista que foi, em tempos, um guarda-redes mais ou menos conhecido. O título do livro é usado como metáfora para alguém que se vê numa situação em que não se pode permitir erros.

Numa manhã, Josef Bloch chega ao trabalho apenas para ficar a saber que foi despedido. Desnorteado, passa a errar pelas ruas da cidade, agindo por instinto. O leitor é confrontado com situações banais, mas sem nexo, Josef Bloch limita-se a deixar que os acontecimentos passem por ele. Há, no entanto, uma situação em que ele reage… da pior maneira: perdendo o controlo sobre si mesmo e cometendo um crime. Vê-se obrigado a fugir, deixa a cidade para se refugiar numa pequena estância de férias, na fronteira entre a Áustria e a Suíça. A partir daqui, Josef Bloch não se pode permitir erros. Continua, porém, a vaguear, sem um plano, ou uma direção.

A escrita de Peter Handke é fria, limita-se a constatar factos. Os sentimentos e as emoções das suas personagens ficam por conta do leitor, mas o estilo é tão poupado (por vezes, mesmo enigmático), que se torna difícil adivinhar o que vai na cabeça de Josef Bloch. Este tipo de escrita fez-me lembrar a de Gonçalo M. Tavares, porquanto o escritor português consegue ser mais emotivo. Peter Handke deixa tudo bem lá no fundo. O que vem à superfície é apenas o que todos conseguem ver, o resto tem de ser imaginado (ou seria melhor dizer adivinhado?) pelo leitor.

Confesso que foi uma escrita que não me empolgou. Realço, no entanto, que Handke tem tantas obras publicadas, que seria desonesto ajuizar sobre o escritor baseada apenas neste livro.