Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

28 de maio de 2021

A Tia Júlia e o Escrevedor


 

Apesar de alguns contornos trágicos (explicarei mais à frente), este é um divertido livro do vencedor do Prémio Nobel de 2010. Divertido será parco atributo para uma obra irónica, muitas vezes auto-irónica, e onde se articulam tantos temas dignos de reflexão, mas o facto é que me diverti muito ao lê-la.

É um romance com elementos autobiográficos. Encontramos Mario Vargas Llosa com dezoito anos, estudante de Direito, em Lima. Apesar de a família ter grande planos para ele (há de tornar-se jurista ou político famoso), Marito, ou Varguitas (como lhe chamam) pouco liga ao curso, pois o seu grande sonho é tornar-se escritor. O seu trabalho numa estação radiofónica, onde prepara os noticiários, é-lhe igualmente mais importante do que os estudos, enquanto se vai ensaiando na escrita de contos, que aliás nada impressionam quem o ouve lê-los. Por isso, ele modifica-os constantemente, acabando por deitar os manuscritos ao lixo.

A dita estação de rádio contrata o boliviano Pedro Camacho, um dos mais famosos criadores de radionovelas da América Latina, sendo aquelas um grande entretenimento familiar, na altura (anos 1950). Varguitas é um apaixonado pela literatura e já leu vários clássicos. Por isso, e apesar da sua juventude, tem consciência de que os guiões radionovelescos não possuem qualidade literária. Mesmo assim, Pedro Camacho fascina-o.

Esta fascinação baseia-se na capacidade criativa do boliviano e na sua dedicação à criação dos folhetins. O homem passa a vida a escrever, quase nem dorme. Escreve os guiões de várias radionovelas ao mesmo tempo, dá instruções aos atores, durante as gravações, e alcança um sucesso enorme entre os ouvintes com os seus enredos intrincados e, alguns, extremamente trágicos. Daí, a tal nota trágica deste romance, pois Vargas Llosa alterna, capítulo a capítulo, a sua própria história com os enredos do criador boliviano.

Nas suas conversas com Pedro Camacho, Varguitas ouve-o atentamente a explicar em que consiste a sua "grande arte", quais devem ser as estratégias a seguir e os pontos a considerar por um criador de enredos. Apesar do tom irónico usado por Vargas Llosa, em momento algum ele põe em causa o genuíno interesse do jovem (ele próprio) pelo "escrevedor" de radionovelas, mostrando uma atitude descomplexada, dando mesmo a entender que algumas indicações dadas por Pedro Camacho lhe foram úteis na sua vida de escritor (que outro vencedor de Nobel confessaria tal coisa?).

Porém, ainda mais empolgante que as radionovelas, se revela a vida de Varguitas, que se apaixona por uma tia divorciada e catorze anos mais velha do que ele. Na verdade, ela é apenas irmã de uma sua tia por casamento, mas, na mentalidade sul-americana da altura, eles são, para todos os efeitos, parentes chegados. Divorciada de fresco, causando incómodo na família, a tia Júlia, bonita e elegante nos seus trinta e poucos anos, passa uma temporada em Lima, em casa da irmã e do marido desta, os tios de Marito, onde ele almoça frequentemente. O jovem já não via a tia Júlia desde a infância e a atração entre eles é imediata.

Os dois acabam por iniciar um namoro que, ao ser descoberto, causa grande escândalo. Perdidamente apaixonado, Varguitas, apesar do medo que tem do pai (por ele confessado) e de ser menor (até aos vinte e um anos), acaba por pedir a tia em casamento. E ela aceita. Ora, Marito não pode casar sem autorização expressa do temido progenitor e, na procura de um alcaide que feche os olhos a tal requesito, a tia Júlia e ele vivem uma série de peripécias que nada ficam a dever aos enredos radionovelescos de Pedro Camacho.

Vargas Llosa faz assim um interessante paralelo entre essa época da sua vida e os guiões de Pedro Camacho, numa espécie de homenagem a esses criadores de radionovelas, dos quais já ninguém se lembra, mas que entretiveram as famílias durante décadas. Além disso, e depois de chegar à conclusão de que «toda a gente sem excepção podia ser tema de conto» (p. 224), Vargas Llosa intui que a vida real, a fonte de inspiração de qualquer escritor, ou "escrevedor", pode enveredar por caminhos tão absurdos e intrincados como um enredo de folhetim. Tudo depende da maneira como se escreve.

Já agora, não resisto a transcrever esta passagem hilariante (entre muitas outras), em que Varguitas entrevista um famoso toureiro venezuelano para a estação radiofónica onde trabalha (p. 225):

«Na manhã seguinte, horas antes de tomar o avião, entrevistei-o num salãozinho do Hotel Bolívar. Deixou-me perplexo comprovar que era menos inteligente que os touros que lidava e quase tão incapaz como eles de expressar-se através da palavra. Não conseguia construir uma frase coerente, nunca acertava nos tempos verbais, a sua maneira de coordenar as ideias fazia pensar em tumores, em afasia, em homens-macacos. A forma era não menos extraordinária que o fundo: falava com uma pronúncia infeliz, feita de diminutivos e apócopes, que matizava, durante os seus frequentes vazios mentais, com grunhidos zoológicos».


24 de maio de 2021

Patriarcado

A propósito da dominância dos homens sobre os outros seres humanos e sua consequente impunidade, lembrei-me de algumas histórias passadas na aldeia de origem do meu pai, perdida nos montes transmontanos, no concelho de Macedo de Cavaleiros. Das que conheço, escolhi quatro, todas passadas durante a primeira metade, ou meados, do século XX. Achei interessante apresentar testemunhos deste contexto especial, porque, devido ao isolamento da aldeia até aos anos 1980, a justiça raramente lá chegava. Era um mundo fechado. E este acaba por ser um retrato da nossa província, pois em todo o lado haveria casos semelhantes. 

1 - Um pastor passava o verão com o rebanho no monte, não ia dormir a casa meses a fio. Uma sua filha costumava ir levar-lhe a comida, todos os dias, começou a fazê-lo com cerca de dez anos, uma caminhada de várias horas, tanto a ida, como a volta. Quando tinha 12 ou 13 anos, engravidou do pai. Aquele era um tempo cheio de superstições, o fruto resultante de uma relação incestuosa era considerada diabólica, ou coisa parecida, e a miúda foi escondida/isolada durante toda a gravidez. Não consta que o pai dela sofresse restrições ou censuras. O meu pai, que me contou esta história, também não faz ideia do que foi feito ao bebé. Só sabe que desapareceu.

2 - Uma mulher, à volta de quarenta anos, acabou por morrer devido aos maus tratos infligidos pelo marido e deixou seis filhos entre os dois e os dezasseis anos. O homem ficou impune e tornou a casar. A sua segunda mulher não quis os filhos do primeiro casamento, só ficou com a mais pequena, de dois ou três anos. Os outros foram simplesmente abandonados. Os padrinhos dos dois meninos levaram-nos para as suas casas. Das meninas ninguém quis saber. O pai das crianças ficou impune também por este crime, ninguém o denunciou às autoridades. A filha mais velha, de dezasseis anos, tinha um namorado, com quem ficou a viver, e levou consigo uma das irmãs. Mas eram muito pobres, não podiam ter mais ninguém a cargo deles. Outra irmã, de doze anos, foi trabalhar numa pensão, em Macedo de Cavaleiros. Acabou por casar aos quinze com um cliente dessa pensão. A mais nova, que ficou em casa do pai e da madrasta, era sujeita a muitos maus tratos por esta. Uma vez, deu-lhe tal tareia e deixou-a tão pisada (a menina tinha três anos!), que duas senhoras da aldeia, ricas e moradoras em Lisboa, tiveram pena dela e levaram-na consigo (foi assim que me contaram, não sei mais pormenores). Pelos vistos, não se deram com ela e acabaram por a entregar à Santa Casa. A miúda fugiu, em adolescente, e terá enveredado por uma vida de prostituição.

3 - Numa casa rica da aldeia, faziam-se serões de fado, a que assistiam várias famílias, também a do meu pai, criança, à altura. Cantavam e dançavam. Um dos cantores/tocadores de guitarra fugiu para Angola com uma das mulheres que costumavam participar nesses serões. Ela era casada e deixou duas filhas de seis e oito anos com o pai. Poucos dias depois de a mãe desaparecer, a mais velha surgiu morta. Estranhou-se muito este caso, pois não se conheciam doenças à miúda. Passados mais alguns dias, surgiu morta a mais nova. Desconfiou-se do pai. Mas ninguém o denunciou às autoridades, não foi aberto nenhum inquérito. As meninas foram enterradas e o pai continuou a sua vida. Tornou a casar e a formar família.

4 - Um homem de outra aldeia foi trabalhar para a do meu pai como sapateiro. Deixou a mulher e os filhos na sua aldeia de origem e engraçou com outra, na localidade de acolhimento. Começou a assediá-la, mas ela recusou-o sempre. Até que a paciência dele se esgotou. Um dia de manhã, foi a casa dela munido de um machado e começou a agredi-la. A vizinha deu conta e foi ajudar a amiga. Acabou por morrer com uma machadada. Entretanto, surgiu mais gente, o homem acabou por ser controlado e a mulher que ele tencionara matar sobreviveu, apesar dos muitos ferimentos infligidos. O assassino cumpriu pena, não havia como ignorar o seu ato. A mulher que ele matou deixou seis ou sete filhos, o mais novo tinha quatro anos.

Camilo Castelo Branco também nos fala da violência que, no seu tempo, imperava nas relações humanas. Da leitura de Amor de Perdição, não foi o caso amoroso que retive, mas sim, a violência extrema no seio das famílias e a forma vergonhosa como as filhas eram tratadas:

«- Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser impostas pela violência. Mas repara, minha querida filha, que a violência de um pai é sempre amor (p.33)».

«Não sofras com paciência», diz Simão numa das suas cartas a Teresa, «luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia, quando o poder paternal é uma afronta» (p. 67).

«Que a não desejava morta, mas, se Deus a levasse, morreria mais tranquilo, e com a sua honra sem mancha»  (p. 103).

 

Nota: a paginação diz respeito à versão ebook, disponível no Projecto Adamastor.

23 de maio de 2021

Pentecostes

«Afonso cumpriu o ritual dos cavaleiros da alta nobreza, guerreiros divinos ao serviço de Deus, purificando o corpo e a alma: jejuou um dia inteiro e passou a noite em vigília na igreja de São Salvador de Zamora, estando a catedral ainda a ser construída.

Meu filho armou-se a si próprio cavaleiro, tomando pela sua mão as armas que se encontravam sobre o altar, benzidas pelo bispo Bernardo de Périgord, realçando assim a sua condição de infante, filho de rainha, neto de imperador. Foi uma cerimónia parca de testemunhas, mas mui intensa para nós, imbuídos do espírito de Henrique, que parecia pairar sobre nossas cabeças como as línguas de fogo do Espírito Santo sobre as dos apóstolos».

 In Memórias de Dona Teresa (Poética Edições 2018) 

 


 

Nota: embora não se saiba a data da investidura de D. Afonso Henriques, muitos historiadores apontam para o Pentecostes (altura preferida, naquele tempo), dos anos 1125 ou 1126.

17 de maio de 2021

Eu também

«Quando tinha 12 anos fui assediada por um vizinho. Um homem com idade para ser meu avô dirigiu-me palavras obscenas, propostas porcas. Sem que me tivesse apercebido, a mulher desse homem também ouviu o seu assédio e confrontou-me dias depois, acusou-me de lhe provocar o marido, dirigiu-me palavras que uma mulher não deve ter para com uma menina. Dele tive medo, mas ela fez-me sentir culpada, suja. Uma mulher com idade para ser minha avó preferiu atacar-me, a mim, uma menina que nem era ainda uma mulher, que enfrentar a realidade de estar casada com um pedófilo, um predador».

«Tinha treze anos quando comecei a ser assediada e nada me preparou para o choque. Na escola todos os rapazes apalpavam as maminhas e os rabos e os genitais de todas as raparigas e levantavam-lhes a saia. Os professores e auxiliares que viam isto - e isto acontecia mais ou menos em todos os intervalos - nunca fizeram nada. Hoje em dia surpreende-me a rapidez com que todos, raparigas e rapazes, aceitámos que este assédio era “normal”».

«Quando comecei a sair regularmente à noite, acho que nunca me senti tão insistentemente tocada, agarrada, ignorada quando dizia que não, que não queria conversar, que não queria dançar, que não queria um copo, etc. Era como se os homens, muitos homens, achassem que tinham o direito de dispor do meu tempo, do meu corpo, de mim. E na mesma medida em que achavam que tinham esse direito, achavam que eu não tinha o direito de lhes dizer não».

«Na verdade, foi com a chegada das minhas filhas à adolescência que percebi a violência das situações por que passei. Reagi sempre com desprezo ou distância, soube defender-me, pelo que nunca me vi como uma vítima. Mas fui assediada várias vezes em contexto laboral. E não quero que as minhas filhas, ou qualquer mulher, ou qualquer homem, continuem a encarar essa situação como uma fatalidade».

«O café está vazio. Sou o único cliente. Atrás do balcão, um empregado, jovem, aproxima-se da colega que arruma as chávenas sobre a máquina do café e passa as costas da mão devagar pelo braço nu da empregada. Ela sobressalta-se, olha-o com medo e foge para o outro extremo do balcão sem dizer uma palavra. Ele vai atrás dela, a rir, divertido, com uma mão agarra-a pelo pulso e força a outra mão através das mãos da rapariga para lhe acariciar de novo o braço. A empregada treme de confusão, de medo e de raiva e sacode as mãos, impotente, com lágrimas nos olhos mas sem querer gritar para não fazer escândalo. Levanto-me da mesa e aproximo-me do balcão. O empregado sorri-me cúmplice, entre homens, sem largar a rapariga, pensando que eu quero apreciar mais de perto o espectáculo e continua a deslizar a mão pelo braço da rapariga. Quando lhe digo para parar, hesita, considera a hipótese de me confrontar e acaba por largar a colega murmurando qualquer coisa do género “Era uma brincadeira… Não estava a fazer nada…”».

«Entrei num café com um amigo de família, bastante mais velho. Senti que tinha uma pedra no sapato a magoar-me. Parei. Apoiei-me na porta. Sacudi o pé algumas vezes. Comecei a ouvir os risos dos muitos homens que estavam lá dentro, frases de uns para outros, senti o calor a subir-me à cara antes sequer de perceber porquê. Até que ouvi, voz gritada, para garantir que chegava a mim e a todos: «Esta aqui quando crescer vai dar uma bela égua. Quero ver é quem a consegue montar.» Gargalhadas. Eu tinha oito anos».

«Tinha doze anos, vinha das aulas. Eram cerca das 18h 15m, mas era Inverno e já estava escuro. Abri a porta do prédio onde morava, uma porta de madeira, sem qualquer vidro. Portas destas eram mais ou menos comuns, nos anos 1970. Entrei e, quando já estava quase a fechar a porta, alguém a travou, do lado de fora. Pensei ser alguém a querer entrar no prédio por boas razões, deixei a porta aberta e dirigi-me às escadas. De repente, fui agarrada pelas costas. Totalmente confusa, dei conta de que estava a ser toda apalpada. Quis gritar e não consegui, assim como não consegui libertar-me. Senti um medo de morte, estava a entrar em pânico, quando fui largada. Senti a pessoa a afastar-se e olhei instintivamente para trás. Vi um rapaz com o sexo erecto fora das calças. Quando me viu a olhar para ele, apontou para o sexo. Subi as escadas a tremer (não havia elevador) e com o coração aos saltos, apesar de ele ter desaparecido. Não contei a ninguém, tive vergonha. E muito medo de que me culpassem - porque não fechaste a porta? Porque não gritaste? Porque não lhe deste um murro? etc., etc. Mas como pode uma miúda de doze anos estar preparada para um ataque destes?».

«Tinha 11 anos. Um velho vizinho do prédio "amigo" do meu pai, ouvia-me a entrar no elevador e como morava no andar de baixo, entrava lá dentro. Apalpava-me, um dia voltei-me e apertou-me o pescoço e ameaçou fazer mal aos meus pais».

Estes são relatos partilhados num grupo do Facebook. Um dos relatos é meu. As mulheres sentem-se encorajadas ao constatar que outras o fazem, surgem cada vez mais a dizerem «eu também». Há igualmente relatos de homens que assistiram a cenas de assédio e se revoltaram (como mostra o exemplo) e são muito bem-vindos. Os ataques, assédios e abusos acontecem em qualquer idade, mas escolhi propositadamente meninas, na sua maioria, para que todos se dêem conta, quão cedo nos mostram que são livres de nos intimidarem e usarem o nosso corpo. E com que impunidade o fazem.

Todas as mulheres já foram molestadas e assediadas, independentemente da maneira como se vestem, ou como se maquilham (ou não maquilham). Muitos homens até preferem as discretas e tímidas por serem mais susceptíveis de não reagir. As que dizem que não se importam, por ser “normal”, apenas recalcam o mal-estar e contribuem para a impunidade dos agressores. A maior falácia, na educação das meninas, é dizerem-lhes que nada de mal lhes acontece, se não usarem roupas provocantes e não derem nas vistas. Não digam isso às vossas filhas e netas! É mentira!

Muitas vezes me dizem estar a cumprir «agenda de esquerda», com textos deste tipo. Mas esta não é uma luta de esquerda, é uma luta de todos os lados. Pela mudança de mentalidades.

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Uma parte muito relevante da sociedade, talvez a maior parte, ainda não consegue compreender o que se passa verdadeiramente quando uma mulher se sente assediada ou à beira de um assédio num contexto laboral. Essa circunstância desrespeita o mais profundo da sua dignidade, põe em causa direitos fundamentais básicos e inibe o seu pleno desenvolvimento como pessoa.

 

Não se trata de direitos das mulheres, não são coisas do “mulherio”.

Trata-se de Direitos Humanos!

15 de maio de 2021

O solidéu do papa

A 15 de maio de 1982, depois de ter visitado o Santuário de Nossa Senhora do Sameiro, em Braga, o papa João Paulo II viajou de helicóptero até ao Porto, onde presidiu a uma missa celebrada junto à Câmara Municipal, na Avenida dos Aliados.

Esta é a versão oficial. Na verdade, o helicóptero que transportava Sua Santidade não aterrou no Porto. Aterrou em Vila Nova de Gaia. Mais precisamente, no Quartel do Regimento de Artilharia Nº 5 do Exército Português, a cerca de duzentos metros do apartamento onde eu morava com os meus pais e o meu irmão.

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Imagem Open House Porto

É conhecida a imagem da igreja e do antigo mosteiro (hoje quartel) da Serra do Pilar, no alto do morro sobranceiro ao rio Douro, de onde se tem uma das melhores vistas sobre a ponte de D. Luís, a cidade velha do Porto e a Ribeira (porto medieval). À altura da visita de João Paulo II, o lanço do muro do Regimento de Artilharia Nº 5 que dá para a Rampa do Infante Santo estava ainda pintalgado de vários círculos vermelhos, assinalando as marcas das balas disparadas a mando do brigadeiro Pires Veloso, em Outubro de 1975, contra os SUV, que controlavam o RASP (abreviatura pela qual era conhecido o Quartel da Serra do Pilar, nessa altura). Durante horas, ouvimos, de nossa casa, as descargas de G3 e da restante artilharia pesada. Mas isto será assunto para outro postal.

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Entrada do Quartel da Serra do Pilar, na Rua Rodrigues de Freitas, © 2011 Horst Neumann

A 15 de maio de 1982, as euforias não eram revolucionárias. Depois de ter aterrado no Quartel da Serra do Pilar, João Paulo II transferiu-se para um descapotável. Desceu a Rua Rodrigues de Freitas e, chegado à Avenida da República, virou à direita, em direção à ponte D. Luís. Por trás das grades de segurança, milhares de pessoas ladeavam o lanço final da avenida que conduz à ponte. Eu fazia parte dessa turba, juntamente com duas amigas. Tínhamos entre dezasseis e dezassete anos.

João Paulo surgiu, finalmente, a acenar à multidão. Quando passou por nós, algo insólito aconteceu: o solidéu voou-lhe da cabeça e aterrou no meio da avenida. Fiquei especada a olhar para o adereço papal, nem sequer me estiquei para seguir o carro até ele desaparecer de vista. Passada a comitiva, lá jazia o solidéu, ninguém lhe parecia ligar. E atingiu-me uma grande vontade de o ir buscar, esgueirando-me por entre as grades. Mas hesitei, as forças policiais vigiavam a multidão que começava a dispersar.

Custava-me, porém, sair dali sem me apossar da relíquia (e mal sabia eu que João Paulo II seria canonizado vinte e três anos mais tarde). Informei as duas amigas das minhas intenções, em busca de solidariedade. Sempre era diferente irmos as três buscar o solidéu, do que uma sozinha. Mas elas alegaram que seríamos admoestadas pela polícia. Repliquei que nenhum dos polícias parecia reparar na peça caída no meio da rua, encontravam-se de costas para ela, concentrados na multidão. Mas as duas mantiveram-se firmes. Se alguém tentasse passar as barreiras de segurança, eles com certeza atuariam.

Fiquei numa hesitação entre o ir e não ir. E o receio, aliado à falta de apoio, acabou por vencer.

Não nego que tivesse sido a melhor decisão. Mas ainda hoje encaro a possibilidade de ter sido bem sucedida, pelo que estaria na posse de uma verdadeira relíquia.

Quem terá ficado com o precioso objecto? Terá sido devolvido ao papa?

Uma coisa é certa: até sairmos dali, o solidéu permaneceu caído no meio da avenida.

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Solidéu papal - imagem Wikipedia

11 de maio de 2021

O Padre Costa de Trancoso

 

O autor deste livro, o historiador Santos Costa, teve a amabilidade de mo oferecer e enviar para a Alemanha. Baseia-se numa lenda de Trancoso: o padre Francisco da Costa terá tido 299 filhos de 53 mulheres! Há um processo com estes dados e com sentença de 1487, arquivado na Torre do Tombo. Duvida-se, porém, da sua autenticidade, ou dos dados lá apresentados, pois será difícil um único homem ter tantos filhos de tantas mulheres, nas quais se incluem uma tia do sacerdote, cinco irmãs e a própria mãe.

De qualquer maneira, vale a pena ler. As lendas fazem parte do nosso património cultural. E o autor prova conhecimento da época e usa linguagem apropriada. Para quem se interessa pelos tempos medievais, um livro destes lê-se com prazer e é sempre fonte de inspiração. O meu sentido agradecimento e os meus parabéns a Santos Costa.

O padre em questão teve sentença pesada:

«Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou».

(Torre do Tombo, Armário 5, Maço 7)

No entanto, acabou por obter o perdão de D. João II «por ter contribuído para o povoamento da Beira Alta». Se bem que eu me pergunte quantos filhos terá realmente tido. E, desses, quantos terão sobrevivido à infância, numa época de grande taxa de mortalidade infantil?

Li algures que perdões destes aconteciam. Não esqueçamos que a sociedade era patriarcal, ou seja, as mulheres não eram muito tidas em conta e um crime sexual acabava por atribuir a culpa a elas. Sinceramente, custa-me a acreditar que todas estas relações se teriam dado por mútuo acordo (se não foram tantas como se diz, teriam sido muitas, há sempre um fundo de verdade nas lendas). Ou seja, o padre terá violado muitas dessas mulheres, incluindo a mãe e as irmãs. Terá, no mínimo, manipulado, para que elas se sujeitassem, no que vai dar à mesma coisa. Sabe-se, hoje, que muitos abusos sexuais perpetrados por elementos da Igreja estão intimamente ligados à manipulação espiritual. Os clérigos utilizam a sua superioridade religiosa e (suposta) moral em chantagens e ameaças, a fim de submeterem as suas vítimas. E um padre do século XV não teria o menor prurido em o fazer.

Dito isto, e o autor vai-me desculpar, mas, e não obstante a qualidade da escrita e o ambiente medieval, não me caiu bem a simpatia pelo sacerdote e as suas "fraquezas" (melhor seria dizer psicopatias). Aqui e ali surge alguma censura, mas muito ténue e condescendente, do tipo da usada com crianças que se lambuzaram com algum doce que não deveriam comer. Que se pensasse, no século XV, que ele, coitado, se deixou levar pelo demo, é algo que não se pode mudar e temos de aceitar. Mas, infelizmente, é um tipo de posição que ainda se aceita, hoje em dia. Tive ocasião de o verificar, fazendo uma pequena pesquisa sobre comentários ao livro.

Não posso igualmente deixar de referir palavras transcritas na contra-capa e que terão sido proferidas, ou escritas, por Aquilino Ribeiro:

«Não será Trancoso? (...) O nome é assim patusco. Olhe contaram-me que era de lá o nosso Nostradamus e um padre raro, único, um padre em que pelos vistos encarnou o génio da espécie».

Sem negar o grande talento literário de Aquilino Ribeiro, ele, pelos vistos, esqueceu-se de que também as mulheres faziam parte da sua espécie. E é notório que se estava a marimbar para os métodos de sedução do tal «génio»!

Salvaguardar património cultural português, sim! Mas o padre Costa de Trancoso devia ser um símbolo do abuso de poder de certos clérigos, a fim de cometerem crimes sexuais, em vez de ser apontado como um «génio» digno de admiração e inveja. Enquanto assim for, as feministas têm ainda muito trabalho pela frente.