Apesar de alguns contornos trágicos (explicarei mais à frente), este é um divertido livro do vencedor do Prémio Nobel de 2010. Divertido será parco atributo para uma obra irónica, muitas vezes auto-irónica, e onde se articulam tantos temas dignos de reflexão, mas o facto é que me diverti muito ao lê-la.
É um romance com elementos autobiográficos. Encontramos Mario Vargas Llosa com dezoito anos, estudante de Direito, em Lima. Apesar de a família ter grande planos para ele (há de tornar-se jurista ou político famoso), Marito, ou Varguitas (como lhe chamam) pouco liga ao curso, pois o seu grande sonho é tornar-se escritor. O seu trabalho numa estação radiofónica, onde prepara os noticiários, é-lhe igualmente mais importante do que os estudos, enquanto se vai ensaiando na escrita de contos, que aliás nada impressionam quem o ouve lê-los. Por isso, ele modifica-os constantemente, acabando por deitar os manuscritos ao lixo.
A dita estação de rádio contrata o boliviano Pedro Camacho, um dos mais famosos criadores de radionovelas da América Latina, sendo aquelas um grande entretenimento familiar, na altura (anos 1950). Varguitas é um apaixonado pela literatura e já leu vários clássicos. Por isso, e apesar da sua juventude, tem consciência de que os guiões radionovelescos não possuem qualidade literária. Mesmo assim, Pedro Camacho fascina-o.
Esta fascinação baseia-se na capacidade criativa do boliviano e na sua dedicação à criação dos folhetins. O homem passa a vida a escrever, quase nem dorme. Escreve os guiões de várias radionovelas ao mesmo tempo, dá instruções aos atores, durante as gravações, e alcança um sucesso enorme entre os ouvintes com os seus enredos intrincados e, alguns, extremamente trágicos. Daí, a tal nota trágica deste romance, pois Vargas Llosa alterna, capítulo a capítulo, a sua própria história com os enredos do criador boliviano.
Nas suas conversas com Pedro Camacho, Varguitas ouve-o atentamente a explicar em que consiste a sua "grande arte", quais devem ser as estratégias a seguir e os pontos a considerar por um criador de enredos. Apesar do tom irónico usado por Vargas Llosa, em momento algum ele põe em causa o genuíno interesse do jovem (ele próprio) pelo "escrevedor" de radionovelas, mostrando uma atitude descomplexada, dando mesmo a entender que algumas indicações dadas por Pedro Camacho lhe foram úteis na sua vida de escritor (que outro vencedor de Nobel confessaria tal coisa?).
Porém, ainda mais empolgante que as radionovelas, se revela a vida de Varguitas, que se apaixona por uma tia divorciada e catorze anos mais velha do que ele. Na verdade, ela é apenas irmã de uma sua tia por casamento, mas, na mentalidade sul-americana da altura, eles são, para todos os efeitos, parentes chegados. Divorciada de fresco, causando incómodo na família, a tia Júlia, bonita e elegante nos seus trinta e poucos anos, passa uma temporada em Lima, em casa da irmã e do marido desta, os tios de Marito, onde ele almoça frequentemente. O jovem já não via a tia Júlia desde a infância e a atração entre eles é imediata.
Os dois acabam por iniciar um namoro que, ao ser descoberto, causa grande escândalo. Perdidamente apaixonado, Varguitas, apesar do medo que tem do pai (por ele confessado) e de ser menor (até aos vinte e um anos), acaba por pedir a tia em casamento. E ela aceita. Ora, Marito não pode casar sem autorização expressa do temido progenitor e, na procura de um alcaide que feche os olhos a tal requesito, a tia Júlia e ele vivem uma série de peripécias que nada ficam a dever aos enredos radionovelescos de Pedro Camacho.
Vargas Llosa faz assim um interessante paralelo entre essa época da sua vida e os guiões de Pedro Camacho, numa espécie de homenagem a esses criadores de radionovelas, dos quais já ninguém se lembra, mas que entretiveram as famílias durante décadas. Além disso, e depois de chegar à conclusão de que «toda a gente sem excepção podia ser tema de conto» (p. 224), Vargas Llosa intui que a vida real, a fonte de inspiração de qualquer escritor, ou "escrevedor", pode enveredar por caminhos tão absurdos e intrincados como um enredo de folhetim. Tudo depende da maneira como se escreve.
«Na manhã seguinte, horas antes de tomar o avião, entrevistei-o num salãozinho do Hotel Bolívar. Deixou-me perplexo comprovar que era menos inteligente que os touros que lidava e quase tão incapaz como eles de expressar-se através da palavra. Não conseguia construir uma frase coerente, nunca acertava nos tempos verbais, a sua maneira de coordenar as ideias fazia pensar em tumores, em afasia, em homens-macacos. A forma era não menos extraordinária que o fundo: falava com uma pronúncia infeliz, feita de diminutivos e apócopes, que matizava, durante os seus frequentes vazios mentais, com grunhidos zoológicos».