Com a liberdade que me dá a qualidade de romancista, Afonso Henriques viu, na vinda do cardeal Guido de Vico à Hispânia, uma oportunidade de conseguir autorização para casar com a sua amada Châmoa Gomes, como ele próprio lhe revela:
Depois de se sentar e a encarar, achou-a mais apetecível do que nunca. A camisa de noite desenhava-lhe o contorno das pernas, ligeiramente afastadas. Os braços, agora pousados sobre o regaço, já não cobriam o peito e Afonso adivinhava-lhe os seios bonitos por entre as pregas do tecido. Precisou de um pouco de tempo para se concentrar e encontrar uma maneira de iniciar o seu relato:
- Já deves ter ouvido dizer que receberemos, neste Verão, a visita de um legado do Papa Inocêncio II.
- Sim, as aias comentaram qualquer coisa. Porquê?
- O arcebispo, a quem tu chamas nomes tão feios, até acha que pode levar o cardeal a libertar-me do jugo de meu primo e...
- Vens-me outra vez com o imperador e a homenagem? - interrompeu-o ela, levantando-se. - Arrancas-me da cama, a meio de noite, por causa dessa história?
- Acalma-te, não tornes a acordar os pequenos! Senta-te e ouve-me até ao fim.
Obedeceu-lhe, contrariada. Afonso olhou-a em silêncio durante algum tempo, antes de perguntar:
- E se eu expuser a nossa situação ao cardeal?
Châmoa escancarou as esmeraldas:
- A nossa situação? Que queres dizer com isso?
- Refiro-me a uma conversa a sós com o cardeal, em que lhe explico que a mãe dos meus dois filhos descende da família condal mais poderosa da Galiza. Guido de Vico compreenderá a urgência em legitimar as crianças. E se o conseguir pôr do meu lado, o arcebispo perderá qualquer poder de interferência!
Châmoa fixava-o como se ele fosse um animal exótico. De repente, levantou-se de um salto e exalou, de respiração cortada:
- Afonso, meu amor, mas isso é uma ideia brilhante!
Estava tão encantadora, com as esmeraldas a luzirem de entusiasmo, os cabelos sedosos espalhados pelos ombros, o peito a arfar de excitação. Afonso manteve-se sentado, como se nada daquilo o impressionasse, e acrescentou:
- A ideia só tem a desvantagem de ainda demorar a pôr em prática. Mas, dadas as circunstâncias, arranjarás mais um pouco de paciência, não é verdade?
- Naturalmente.
- Ainda há outra coisa que tens que levar em conta: só falarei com o cardeal, depois de o arcebispo ter resolvido a questão da minha vassalagem. Não pretendo arriscar de maneira nenhuma o sucesso do seu plano.
- Como queiras... Conquanto me prometas que falarás com esse cardeal sobre nós, enquanto ele cá estiver.
Afonso levantou-se, aproximou-se dela e puxou-a para si. Desta vez, ela não ofereceu resistência. Como era bom tornar a senti-la assim abandonada nos seus braços, cheirar-lhe os cabelos sedosos e o pescoço macio. Mas o arcebispo de Braga, seu grande amigo, D. João Peculiar, antecipou-se-lhe, negociando, com o cardeal, o casamento com D. Mafalda (ou Matilde) de Sabóia:
Guido de Vico bocejou:
- Com isto, despachámos os assuntos do dia, não é verdade?
- Bem… - João Peculiar tossicou. – Desejava a vossa colaboração para mais uma questão, eminência.
Guido de Vico passou a mão pela testa, num gesto de impaciência. Mas, em seguida, cruzou as mãos sobre a barriga e anunciou:
- Sou todo ouvidos.
- Trata-se do matrimónio de D. Afonso Henriques.
O cardeal permitiu-se uma expressão de espanto, ao erguer as sobrancelhas.
- Do matrimónio?
- Já ouvistes certamente dizer que ele tenciona casar com a sua barregã.
- Sim. Mas também me chegou aos ouvidos que essa... senhora, que já lhe deu dois varões, tem origem nobre.
- É verdade - admitiu o arcebispo a contragosto. - É filha do antigo conde de Toroño, que, humilhado pelo imperador, acabou por professar no mosteiro beneditino de Pombeiro. E, pelo lado da mãe, é sobrinha do conde de Trava, o nobre mais poderoso da Galiza.
- Ora, caro arcebispo, sei que sois muito cioso dos vossos deveres. Mas nós prelados também não nos devemos afastar demasiado do mundo terreno. Bem sabeis que uniões desse tipo são toleradas pela Igreja e D. Afonso estaria longe de ser o primeiro monarca a fazer um casamento desses. Até vos digo: os dois pequenos deviam ser legitimados o mais depressa possível, a fim de assegurar a descendência do pai.
D. João Peculiar sentiu um calafrio, mas manteve a pose:
- Nada poderia ser mais desvantajoso para el-rei de Portugal do que uma união matrimonial com uma parenta dos Trava. Eu diria até que seria uma verdadeira tragédia!
O arcebispo explicou toda a situação, sem se esquecer de mencionar as razões que sustentariam uma anulação do matrimónio.
Guido de Vico reflectiu, tornou a passar a mão pela testa, enfastiado, e acabou por dizer:
- Não estou em condições de julgar o caso, assim de repente. Terei que confiar no vosso juízo. Se dizeis que a união é inconveniente... pois será. No entanto, continuo a não perceber em que vos possa ser útil.
- Sou de opinião que D. Afonso devia casar com uma donzela, cuja família estivesse livre de quaisquer influências do poder imperial hispânico, a fim de melhor marcar a distância que obterá ao confiar-se à Santa Sé. Vós, eminência, conheceis as famílias mais nobres da Cristandade. Não poderíeis dar uma sugestão que fosse?
- Eu? Bem... talvez. Mas porque haveria D. Afonso, que já não é nenhum jovem imberbe, de casar com uma dama proposta por mim?
- A libertação da suserania do imperador depende de vós, não é verdade? Digamos que, a fim de a merecer, ele teria que fazer certas concessões... Por exemplo, que Roma se reserve o direito de decidir sobre quem deverá ser a futura rainha de Portugal. - Depois de uma pausa: - Peço-vos que considereis este assunto, eminência! Nem imaginais o peso que me tiraríeis dos ombros.
O cardeal acaba por propor a união com a filha do conde Amadeu III de Sabóia.
Em breve, D. Châmoa Gomes se haveria de afastar da vida de D. Afonso Henriques, deixando-lhe, no entanto, dois filhos, que teriam sido criados na corte coimbrã. O mais velho, Fernando Afonso, terá até lutado pelo seu direito de suceder ao pai. Na sua biografia de D. Afonso Henriques, o Prof. Mattoso fala-nos na existência de tensões e conflitos, talvez mesmo conflitos graves, entre o herdeiro D. Sancho e o meio-irmão Fernando Afonso, pois a derrota e a diminuição física de Afonso Henriques no desastre de Badajoz criaram no reino um ambiente de apreensão.
Mas isso só aconteceria quase trinta anos depois do Tratado de Zamora, o próximo assunto de que aqui falarei.
Um espisódio que me escapou, fruto de uma educação em pleno Estado Novo. Gostei desta Châmoa... uma mulher que sabia ter paciência, coisa rara, mesmo naqueles tempos.
ResponderEliminarDeixei qq coisa lá no Em Livro.
São interessantíssimos os episódios da nossa História, que envolvem os poderes clericais e os comcubinais.
ResponderEliminarParece até, que a História de Portugal teria seguido um rumo diametralmente oposto, ou diferente, se os mesmos não tivessem sucedido.
Um episódio marcante e demonstrativo do carácter férreo de D. Afonso Henriques, no meu ponto de vista, é aquele em que, por ter prendido e agrilhoado a mãe, recebe por intermédio do bispo de Coimbra, ordem para a soltar, com a ameça de excomunhão, se não lhe obedecer.
Como não obedeceu, o bispo excomungou-o e pirou-se para Roma, indo fazer queixinhas ao papa, que lá do alto do seu poder, envia um cardeal para redimir o nosso Rei, ou então reconfirmar a excomunhão de Afonso Henriques e do reino.
Como Afonso Henriques, atestou através das cicatrizes obtidas nos combates contra os mouros, que fé não lhe faltava, o cardeal excomungou-o novamente, assim como ao reino e durante a madrugada, deu de frosques.
Então o nosso Homem, em vez de ir pedir batatinhas, montou a cavalo, perseguiu o cardeal e, de espada desembainhada, propôs-lhe a troca da cabeça pelo retirar da excomunhão.
Parece que o cardeal tinha olho pró negócio e tratou logo de aceitar a troca.
;)))
Os poderes clericais tiveram um papel fundamental na nossa História. Foi através da vassalagem ao Papa que Afonso Henriques se libertou da suserania do rei de Leão. Ao contrário do que se pensa, não foi através do Tratado de Zamora. Aí, o primo reconheceu-lhe o título real, mas não o libertou da vassalagem. Como imperador, tinha o direito de exigir vassalagem a monarcas. E Afonso Henriques assinou "de cruz". Ao mesmo tempo, combinava a homenagem ao Papa com o cardeal...
ResponderEliminarTratarei disso brevemente :)
quem foi a primeira rainha de portugal a mafalda ou a chamoa
ResponderEliminarA primeira rainha foi Mafalda. Châmoa não passou de barregã, pois Afonso Henriques não casou com ela. Também os filhos dela não foram considerados na sucessão do trono, apesar de serem mais velhos do que o infante Sancho, nascido já o pai tinha mais de 45 anos.
ResponderEliminarPesquisas históricas recentes apontam para que o filho mais velho de Châmoa terá lutado pela sucessão do trono.
Eu volto a perguntar tem forma de provar o que escreve ?
ResponderEliminarJoão Felgar