Ilustração de Jorge Miguel |
Os habitantes que restavam no bairro de Alcamim tentavam defender-se de uma tentativa de assalto perpetrada por alguns cruzados, arremessando pedras dos terraços das suas casas. O arrabalde ocidental era conhecido como bairro de Alcamim, devido à sua igreja de Santa Maria de Alcamim, uma santa moçárabe.
- Os cruzados - perguntou Aischa - não saberão que os habitantes do bairro são cristãos como eles?
- Ora - retorquiu Amir, - o que sabem estes homens, vindos de tão longe, sobre a realidade aqui na nossa Lušbūna?
- Os portugueses bem sabem o que são moçárabes - replicou ela furiosa. - Ibn Errik não é o comandante deste cerco? Porque consente ele numa coisa destas?
- Não me parece que seja um ataque planeado. Pelos vistos, os majus mal podiam esperar para usarem as suas armas e lançaram-se ao bairro já meio desabitado.
Nisto, alguns mouros atreveram-se a uma surtida pela bâb al-khawkha, pois urgia defender os al-hurî, celeiros subterrâneos localizados no flanco da encosta da alcáçova. Mouros e moçárabes pareciam estar em vantagem devido à sua situação, por sobre a encosta. Mas cada vez mais cruzados se aventuravam pelas ruelas íngremes de Alcamim. Alguns lograram mesmo atingir a linha de cintura defensiva da alcáçova, um caminho que, começando na bâb al-khawkha, circundava o monte do castelo pelo poente e norte. Os atacados viram-se assim igualmente cercados pelo lado de cima.
Ao constatarem que os al-hurî e as suas preciosas reservas estavam perdidos, os mouros apressaram-se a regressar à segurança das muralhas, logo fechando a bâb al-khawkha e barrando a entrada à maior parte dos habitantes de Alcamim, que tentava agora desesperadamente fugir. Iniciaram-se combates sangrentos pelas ruelas do arrabalde. Os moçárabes serviam-se de adagas, punhais, ou mesmo de pedras.
- Este espectáculo não é para os teus olhos - disse Amir à sua noiva. - Anda, vamos...
- Não te preocupes comigo! Nada me arrancaria daqui agora. Tenho de ver no que dá esta refrega!
O rapaz observava-a espantado, mas ela quase não notou, concentrada nos acontecimentos. Até que bradou:
- Muitos moçárabes conseguem fugir, circundam o monte.
A moça nem esperou pela reacção do noivo, desatou a correr pelo adarve, entrando na alcáçova. Amir corria atrás dela. Passaram a curva na ponta noroeste, onde a couraça, o lanço de escadas fortificadas, fazia a ligação à torre albarrã. Continuaram até à torre na ponta nordeste, onde Amir constatou:
- Os fugitivos aproximam-se do almocavar!
- E não os podemos ajudar? - Na sua fúria, Aischa dirigiu-se aos soldados que estavam de guarda naquela torre: - Porque não se torna a abrir uma das portas, a fim de deixar entrar os coitados?
- Seria arriscado demais - respondeu um dos homens. - Muitos cruzados poderiam aproveitar a oportunidade para se infiltrarem na al-qasbâ.
- Os perseguidores não são tantos como isso - insistiu ela. - A maior parte parece ter ficado no bairro de Alcamim, a fim de saquear as casas e os al-hurî.
- Além disso - acrescentou Amir, apoiando-a, - os moçárabes parecem levar a melhor nos combates junto ao almocavar, põem muitos dos majus em fuga. Bem se podia abrir uma porta, enquanto não surgem mais...
- Tarde demais - retorquiu o soldado, apontando para a encosta da colina do acampamento português.
Aischa olhou para a sua esquerda e os seus olhos dilataram-se ao aperceber-se de que os homens de Ibn Errik vinham em ajuda dos seus aliados. E foi ali, junto ao almocavar, o cemitério islâmico onde estava enterrada a sua mãe, que deram o golpe de misericórdia naquele punhado de fugitivos moçárabes.
Tem sido assim, ao longo da existência humana... homens que matam outros homens, somente pela sede da conquista.
ResponderEliminarExcelente descrição Cristina. Imagino, tanto o trabalho que te deu pesquisar, como o prazer que te deu escrever.
;)
É verdade. O trabalho exaustivo da pesquisa é compensado ao passar as ideias que vão surgindo para o papel.
ResponderEliminarObrigada pelo elogio :)
Muito bom.
ResponderEliminarAqui vê-se o drama dos moçárabes.Cristãos ibéricos a viverem em comunidades muçulmanas, acabam por não serem bem aceites tanto dum lado como do outro.
Gosto desta Aisha.Muito humana.
:)
Olinda