Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

31 de outubro de 2011

Aprender a Rezar na Era da Técnica



Lenz Buchmann, um cirurgião que, a certa altura, decide seguir a carreira política, é destituído de sentimentos, devido à educação que teve. Os agradecimentos e os elogios incomodam-no, tudo o que seja emotivo é por ele desprezado:

Mas a cada dia que passava, os elogios e a admiração técnica que os doentes, os colegas médicos e o pessoal do hospital lhe dirigiam tornavam-se insuportáveis. Não o irritava ser considerado competente mas sim que essa competência fosse confundida com uma certa bondade, sentimento que desprezava em absoluto. E essa confusão - entre bondade e competência técnica - começava a corroer a barreira que Lenz havia construído entre a sua profissão e a sua vida particular na qual a dissolução de valores morais era nítida. O prazer que sentia em humilhar prostitutas, mulheres fracas ou adolescentes, pedintes que lhe batiam à porta ou a própria mulher, não podia ser mais antagónico com a aura que alguns familiares de doentes por si operados e salvos lhe colocavam em volta.
(página 32)


Este livro é uma verdadeira sucessão de frases de alta qualidade literária e o carácter da personagem principal espelha-se, tanto na linguagem fria, mas eficiente, como na estrutura de capítulos curtos e estanques. Dir-se-ia tratar-se de um livro perfeito.

Mas quanta perfeição aguentamos? Às vezes, eu tinha a impressão de estar a ler algo escrito por uma máquina programada com a receita da qualidade literária pura e dura. Chegou mesmo a aborrecer-me, confesso que estive para o largar.

Mas a persistência compensou. Um crime e a doença de Lenz Buchmann acabaram por fazer deste livro um romance que cativa o leitor, a ponto de lhe custar largá-lo, para fazer uma pausa. Por fim, a ironia suprema: Lenz Buchmann, que gosta de humilhar os outros e que não admite uma falha (principalmente, em si próprio), acaba os seus dias totalmente inútil e fraco. A humilhação final é deixar-se chegar a um estado que não lhe permite sequer suicidar-se, seguindo o exemplo do pai (Pelo chumbo - dizia Frederich ao seus dois filhos -, um Buchmann morre pelo chumbo; página 108), figura que ele venera, apesar de lhe ter dado uma educação desumana.

- Nesta casa o medo é ilegal - era uma das frases mais marcantes de Frederich Buchmann.
(...)
Frederich castigava as manifestações de medo de qualquer dos seus filhos fechando-os à chave num compartimento da casa, «a prisão», em que tapara as janelas, em que não havia uma única peça de mobília ou objecto.
Poucas vezes (embora marcantes) Lenz foi colocado na «prisão» por cometer a ilegalidade de mostrar medo. Pelo contrário, o seu irmão Albert era constantemente trancado naquele espaço que suspendia o lado lúdico, o ataque ou a defesa. Era, em absoluto, um espaço neutro, onde as funções dos gestos se tornavam nulas: o movimento era desnecessário e quase ridículo. As paredes não eram superfícies estimulantes para um humano, muito menos sendo ainda, esse humano, uma criança. Era um espaço, por isso, que esmagava a infância - uma massa pesada esmagando outra bem menos robusta -, era impossível naquele espaço agir ou mesmo pensar de acordo com a idade.
(páginas 91/92)

Um retrato psicológico interessante. Eu, porém, apreciaria uma escrita mais emotiva. Afinal, tudo na vida são emoções. Bani-las, como faz Lenz Buchmann, é ter medo delas; decretar o medo como ilegalidade, é ter medo do medo - nada mais emotivo.

8 comentários:

  1. O teu primeiro GMT? O vazio de uma mente brilhante como porta de toda a crueldade e da loucura. Será esse vazio emotivo que encontras na escrita de GMT?

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  2. É isso mesmo, António, pelo menos, neste livro. Como é possível escrever tão vazio de emoções, descrevendo actos cruéis como quem fala de equações matemáticas? A qualidade literária é indiscutível, não há uma frase, ou uma palavra, que esteja a mais, tudo encaixa, como num puzzle.

    Tenho também o "Jerusalém" e hei-de lê-lo. Estive, aliás, para o ler primeiro. Teria feito melhor?

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  3. Muito boa noite, Cristina Torrão.

    Primeiro que tudo, peço-lhe desculpa, porque venho pedir-lhe uma coisa.

    Em segundo de tudo, dizer-lhe, à laia de explicação, que sou um fã da História de Portugal, tenho todas as que foram publicadas, desde a ternurenta de Herculano, até às dos historiadores de hoje. Tenho também vários livros "avulsos", entre os quais um do meu tetratetra_avô que não digo qual é.

    O tema que me leva a, tão descaradamente, vir aqui, é o Tratado de Tordesilhas. Qualquer uma dessas Histórias que referi fala do Tratado, obviamente, mas não me diz aquilo que quero saber agora e que me anda a fazer a cabeça andar à roda (literalmente):

    Sabe se há, nos Lusíadas e, se houver aonde está, alguma referência a esse Tratado?

    Há dois dias que ando à volta do próprio livro e googlando por toda a parte (mas pelos vistos sem o engenho e a arte que, afinal, o poeta teve)

    E pronto, respiro fundo e peço a sua compreensão para este abuso.

    Boa noite e muito obrigado, Cristina Torrão.

    Simão Gamito

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  4. Caro Simão,

    não peça desculpa, eu é que terei de pedir, pois vejo-me obrigada a desiludi-lo. O Tratado de Tordesilhas é posterior à época que tenho andado a pesquisar e não sei pormenores. Além disso, confesso que os meus conhecimentos dos Lusíadas não são muito profundos, apesar de citar, no início do meu romance, a parte correspondente a D. Dinis. Mas não lhe sei dizer se há referência ao Tratado de Tordesilhas.

    Proponho consultar um/a professor/a de Português do ensino secundário, que estará mais apto/a a responder a essa pergunta do que um/a de História. Os de Português é que conhecem melhor os Lusíadas.
    Por acaso, não conheço nenhum/a (estou há quase 20 anos na Alemanha). Tenho algumas primas professoras, em Portugal, mas são de Filosofia, Geografia, Inglês/Alemão...

    Desejo-lhe boa sorte na sua procura, lamentando, mais uma vez, não o poder ajudar.

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  5. Caro Simão Gamito,

    talvez isto seja uma pequena ajuda:
    as estrofes referentes a D. Dinis encontram-se no Canto III (estrofes 96 a 98). O Tratado de Tordesilhas é posterior. Talvez lendo mais algumas estrofes deste Canto, que falam dos reis que sucederam ao Lavrador, chegue a alguma conclusão.

    P.S. Confesso que não tenho nenhum exemplar dos Lusíadas aqui, na Alemanha.

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  6. Cristina, muito obrigado e, obviamente, não tem que pedir desculpa coisa nenhuma.

    Vou continuar a procurar, mais que não seja, porque sim!

    Ainda ontem passei os olhos por uma edição on-line que tem descrições dos assuntos, tipo "O Gama fala com...", ou "Baco mostra-se invejoso...", etc., antes das respectivas estrofes.

    Se eu encontrar alguma coisa, venho contar-lhe, mais que não seja (que será, claro!) por curiosidade.

    Boa noite, Cristina Torrão e uma vez mais, obrigado.

    Simão Gamito

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  7. Sim, já agora, fiquei curiosa ;)

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