E aquele irmão sisudo. Quando enviuvou, por volta dos vinte e poucos, voltou para casa das manas, que lhe dedicaram a sua vida e todas as atenções. Ele não precisava de pedir nada, aliás, mal comunicava, elas antecipavam-lhe os desejos. Rodeavam-no de afeição, cuidavam com todo o zelo que ele saísse agasalhado, que apreciasse as refeições programadas e decididas entre as duas. E um bolinho para o lanche, e um docinho para depois do jantar. E a ele bastava-lhe estalar um dedo - metaforicamente, claro, porque nem isso fazia. Depois do almoço, andava-se em bicos dos pés lá em casa para não perturbar a sesta do mano. Uma vez por semana, preparavam-lhe um banho com sais e vinham esfregar-lhe as costas, besuntá-lo com água-de-colónia. Era um homem carrancudo, silencioso, sempre metido consigo e com os seus pensamentos esfíngicos, com os dedos amarelos da nicotina. Nunca deu a menor atenção a Eugénia, aliás, parecia não gostar de partilhar a solicitude das irmãs, da qual beneficiaria em exclusivo ao longo de mais de quatro décadas. Mas também não hostilizava, limitava-se a ignorá-la e a responder por monossílabos às irmãs sempre que as conversas se referiam à menina. De resto, quando o efeito da novidade passou, as tias velhas começaram a distrair-se dela e a concentrar outra vez todos os esmeros no bem-estar do mano, a amparar-lhe as cinzas do cigarro, a escolher-lhe a roupa, a esgrimir argumentos sobre a indumentária dele mais adequada à meteorologia do dia, a ajudá-lo a vestir o casaco, e a ficar as duas no alpendre, a contemplá-lo, com olhos mirrados de miopia e enlevo, até ele cruzar a esquina. Quando ele regressava das suas voltas, as tias comportavam-se como o Bolinhas, quase que abanavam a cauda e tinham tremeliques, davam corridinhas pela casa até à porta, punham-se aos saltinhos à volta dele e disputavam a primeira beijoca. E a que fora preterida fazia que amuava, e vinha de lá o tio, agarrava-a pela cintura e tentava erguê-la, e a outra a fazer que o ajudava e ficavam as duas numa galhofa afogueada, a suspirar e a prender as madeixas encanecidas soltas do rolo atrás da cabeça.
(...)
Mãe, como é que morreu a mulher do tio?
Cala-te!
Que Importa a Fúria do Mar, Ana Margarida de Carvalho, pp. 128/129 (Teorema, 2013)
Campo fértil e com espaço para nele se semear grilhoadas lucubrações ou, invectivas libidinosas. Afinal, as tias eram somente carinhosas...
ResponderEliminarAi quem me desse uma tia que me esfregasse os lombos e me aspergisse o corpo com uma fragância aromática...
;)))
:D
ResponderEliminarAs relações familiares têm que se lhe diga. E, muitas vezes, são bem diferentes daquilo que aparentam...
Um dia vou escrever as minhas memórias, nesse capítulo...
ResponderEliminarForça!
ResponderEliminarGostava de ler :)
Não sei se gostavas...
ResponderEliminar;)
Algo me diz que sim...
ResponderEliminar;)
Na verdade, esse é um problema que atinge alguns escritores, principalmente, os estreantes: o receio de tornar público aquilo que escrevem na solidão do seus escritórios.
Na verdade, começando pelo teu princípio, não receio que se saiba aquilo que diz respeito à minha pessoa, desde que, havendo terceiras pessoas envolvidas, as suas identidades fiquem devidamente protegidas.
ResponderEliminarMas, uma vez que evidencias interesse em conhecer "as minhas memórias" no capítulo das relações famíliares, íntimas e secretas, devo começar por advertir-te que foram várias, com várias personagens e começaram a suceder quando tinha 9 anos e nenhuma delas se pode considerar de cariz ortodoxo e todas se rechearam de pormenores... escabrosos.
Se ainda assim mantiveres o desejo de as conhecer... relata-las-ei com todo o gosto.
Bartolomeu, eu quis dizer que as memórias podem dar bons livros. Se tiveres intenção de passar as tuas a livro, seria um interessante desafio, pois, pelo que conheço da tua escrita, poderia dar uma narração bem interessante. Mas aviso-te que escrever um livro, do princípio ao fim, exige uma boa dose de disciplina ;)
ResponderEliminarDisciplina é algo que me causa urticária, assim como tudo o que tenha a ver com regras e ou alinhamentos. Sou um tipo espontâneo em tudo, sem colidir com a espontaneedade dos outros. Até os comentários que coloco saem sempre ao sabor do improviso e sem preocupações com formas gramaticais e muitas vezes ortográficas.
ResponderEliminarMas não considero que possua matéria suficiente para escrever um livro e muito menos capacidade para imaginar situações ou histórias. Aquilo que me dá prazer, é ler e comentar e deixar a imaginação correr, ao sabor das conversas pessoais ou virtuais. Resumindo: um livro escrito por mim... hmmm... hmmm... não me parece nada.
Bem, escrever ao sabor do improviso pode ser uma grande qualidade ;)
ResponderEliminar... que pode sofrer o efeito das alterações meteorológicas, ou outras. Assim, o "escritor" de improviso, poderá tornar-se um escritor imprevisto e nesse caso lá se vai a disciplina e as regras que a compõe, para o galheiro. Isto leva-me a concluir que o escritor, primeiro se obriga e depois é obrigado a manter um estilo de escrita e a ser fiel a uma área literária. Imagina se Saramago ainda fosse vivo e o próximo livro que escrevesse fosse sobre colinária?! E se ainda por cima pontuasse os complementos e usasse o travessão no início de cada discurso directo? Se quando escreveu o evangelho foi de imediato apelidado do maior inimigo da religião, que seria se escrevesse um livro sobre receitas ou sobre a forma de a mulher se comportar em sociedade?!
ResponderEliminarÍa ser lindo, ia, ia...