Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

27 de março de 2014

a máquina de fazer espanhóis


A minha estreia nas leituras de Valter Hugo Mãe foi acompanhada de sentimentos variados, à medida que avançava no livro. Passando por cima da dificuldade em distinguir pontos finais, num texto sem maiúsculas, e do discurso direto sem pontuação, o início pareceu-me um cliché: o senhor Silva fica viúvo depois de mais de quarenta anos de casamento, não consegue lidar com a situação e, como se isso não bastasse, os filhos ingratos despejam-no num lar.

Sem faltar ao respeito pelos idosos (aliás, aproximando-me eu própria dos cinquenta, estou cada vez mais perto da terceira idade; e nem tenho filhos para cuidar de mim), confesso que tenho problemas com os julgamentos precipitados que se fazem dos filhos "ingratos". Nunca fiz um estudo exaustivo do assunto (nem para isso tenho meios), mas é minha convicção que, na maior parte das vezes, os filhos agem à semelhança dos pais, ou seja, se não têm pejo em despejar o idoso num qualquer lar e mal se dignam a ir visitá-lo, penso que não teriam sentido muito respeito pela sua pessoa durante a infância. Criar um filho não é só sustentá-lo, vesti-lo e pagar-lhe os estudos. Para isso, podiam pôr-se todas as crianças em instituições.

O senhor Silva, extremamente revoltado, recusa-se a falar com os outros habitantes do lar, com o pessoal que lá trabalha e mesmo com a filha, quando ela o visita. Nas suas cogitações, faz questão de sublinhar que foi um pai totalmente dedicado à família. Mas só temos a sua versão. E eu duvido que um pai que realmente sinta carinho por um filho fale assim dele, por muito revoltado que esteja:

«e assim abri a boca e acrescentei, dizes ao teu irmão que é um porco, e que das poucas coisas que me dariam gozo nesta vida uma era desfazê-lo à paulada até lhe arrancar a cabeça, dava-lhe tantas naquele focinho que lhe havia de arrancar os lábios, para nunca mais ninguém lhe dizer que tem a boca da mãe, porque ele não tem o direito de ficar com rigorosamente nada da mãe. ouviste, elisa. ouviste. dizes ao teu irmão que se mate, mas que nunca se atreva a aparecer-me aqui» (p. 58).

Ai, senhor Silva! Tem a certeza que isso é só teoria? Mesmo tendo em conta que o filho está na Grécia há três anos e não veio ao funeral da mãe, um pai que nunca espancou o filho diria isso? Além disso, sobrecarrega a filha com esse desabafo violento, para já não falar dos netos presentes.

Nestes momentos, a personagem não me parece credível. À medida que fui lendo, porém, e como disse, os sentimentos modificaram-se. Estava à espera de outro cliché: o do lar que não respeita os seus habitantes. Mas não se verificou. Na verdade, tanto o médico, como o restante pessoal, é muito simpático e respeitador e tudo fazem para proporcionar o bem-estar dos idosos. O senhor Silva vai ficando mais afável, criando amigos. E lembra velhos tempos, os da ditadura, em que ajudou um jovem perseguido pela PIDE, mas que acabou por denunciar, com receio do que a policia política pudesse fazer à sua família. Nas suas cogitações, esse episódio atormenta-o, sente remorsos, culpa.

A caracterização da sociedade portuguesa do tempo do Estado Novo está, a meu ver, muito bem conseguida, assim como a amargura de quem se sente perto do fim. O senhor Silva é atormentado por fantasmas, tem pesadelos horríveis. E eu novamente me pergunto de onde virão esses fantasmas, num homem que, segundo ele próprio, tanto estimou e amou a família. Enfim, há arrependimentos:

«e também a raiva que me aquecera contra o meu filho havia de ser em boa parte uma combustão exagerada de gestos que nunca teria. era da infelicidade tão grande e de estar tão magoado, tão perplexo com o que é uma família, afinal. eu fiquei com aquele dia atravessado no peito. cheio de ideias confusas que me punham ainda a proteger as minhas crias, mas só depois de as ter desprezado e atirado para os perigos que, instintivamente, acreditava eu, haveriam de os amadurecer e fazer compreender o que seria certo ou errado no lugar que ocupavam entre mim e a laura» (p. 64).

O amor pela esposa falecida, as saudades, são evidentes ao longo do romance. Mas fica-se com a sensação de que os filhos teriam sido um pouco esquecidos, sacrificados, em nome desse amor.

Ser pai e mãe não é apenas a ostentação de um título. Os idosos são frágeis. Mas as crianças não o são menos.


5 comentários:

Anónimo disse...

Bem visto!

ABC

Cristina Torrão disse...

Obrigada!

Bartolomeu disse...

Por sinal, não leio Valter Hugo Mãe. Já li um livro dele, mas até já não me recordo qual foi. Poderei voltar a lê-lo se por ventura escrever algum cujo título seja: a máquina de fazer espanholas. Não sei porquê, aprecio imenso a mulher espanhola. Ou melhor, julgo saber. Para mim, a mulher espanhola possui um porte e uma personalidade que me seduzem, que me capturam os sentidos. Lembro-me de um dia perseguir uma espanhola, numa rua de Sevilha, durante mais de meia hora. Era uma mulher que já tinha ultrapassado os 50 anos, mas possuía um andar de gazela, uma certa majestosidade na atitude. Ainda por cima, a mulher espanhola, não finge nas relações, tão pouco é indecisa. Quando gosta do homem, ´não se importa nada de tomar a iniciativa de se aproximar e de o seduzir. Diz o que quer e como quer. Olé!!!
Mas voltando ao Hugo, porque isto não é só chegar aqui e dizer: ah e tal, porque não aprecio a escrita do Valter e pronto. Eu não gosto da escrita do Mãe porque fico com a sensação de que o tipo tenta manipular o leitor, tenta prende-lo a banalidades. Lembra-me aqueles tipos que não têm nada para dizer e enrolam, enrolam criam a espectativa de que a seguir dirão algo importantíssimo, e no fim... a montanha nem um rato pare... pare uma pulga, ou menos.
Resumindo; não leio Valter Hugo Mãe, mas não me sinto minimamente comprometido ou devedor de seja o que for, porque estou certo que ele também não se rala nada com a minha não-escolha.
;)))

Vespinha disse...

Ainda só li A desumanização, e foi um livro que me transmitiu uma tristeza gigante. Não está escrito dessa forma, tão sem pontuação, mas nota-se um estilo. Ainda não estou preparada para outro livro dele...

Cristina Torrão disse...

Ora bem, Bartolomeu ;)
É verdade: sabias que tive uma bisavó espanhola? É capaz de me ter calhado ainda um pouco de "salero" ;)

Vespinha, penso que o VHM terá de facto modifcado o seu estilo. Já não apresenta o seu nome só com letras minúsculas, por exemplo. A desumanização interessa-me, mas acho que vou também esperar um pouco para tornar a ler este escritor.