Mais um formidável texto de José Rentes de Carvalho:
«Sem ser o que se chama um bicho-de-buraco, também me não
posso considerar medianamente sociável, pois fora possuir uma capacidade
limitada para o convívio, a minha paciência suporta mal a maioria das
conversas.
Francamente, não me interessa saber o que este e aquele ressentiram ao visitar
as Pirâmides, ou qual é agora o preço do capuccino nas esplanadas dos Champs-Elysées. Menos ainda que na praça
de São Pedro, com vinte e cinco mil outros, tenham recebido a benção do Santo Padre.
Que a sogra tenha sido operado a um quisto no pescoço ou que, devido à
escandalosa subida dos preços, já não valha a pena comprar casa de férias na Dordogne.
De visitas são poucas as que gosto, mas os jantares, que sempre me foram um
momento agradável do dia, nalgumas ocasiões, e com certos convivas, estão-se-me
a transformar em martírio.
Fadiga da idade, impaciência inata, o caso é que as mais das vezes, depois de
horas à mesa, não consigo evitar que o meu rosto revele o aborrecimento, que os
olhos procurem o vazio, o cérebro se me enevoe e a língua recuse participar na
conversa.
Transformo-me num macambúzio anfitrião, o que pelos jeitos não afecta esses
hóspedes. Indiferentes ao meu humor, eles continuam a contar do Papa e da Dordogne, e do quisto, e da má qualidade
da hortaliça, e do que viram ontem na televisão. Incansáveis, repetem as
Pirâmides, o preço do cappucino, recordam a pontada que uma vez lhes
deu à saída do teatro, remoem os seus pequeninos interesses. Mostram as botas
que, regateando, compraram em Lisboa por dez réis de mel coado. Desfiam com
minúcia as razões da queda do índice da Bolsa...
Duas, três, cinco, as horas arrastam-se, a minha cabeça oura, revira-se-me o estômago,
falta-me o ar. Sinto-me exausto, derreado pelo contraditório esforço de
permanecer cortês e disfarçar a misantropia».
Bom dia Cristina Torrão, trouxestes o modo fidedigno a crítica na certeza da arte apresentar-se humana inclusive o bom gosto.
ResponderEliminar