Enfim,
não havia como recuar. Restava-lhe tentar compor as coisas de maneira a que o
resto da família não sofresse as consequências do comportamento da filha
subversiva e criminosa. O facto de outros filhos de boas famílias se deixarem igualmente
envolver em ações subversivas dava-lhe um certo conforto, sentia-se menos
sozinho, mais compreendido. Talvez devesse dirigir-se aos seus antigos contactos da PIDE, explicar-lhes
que era vítima de uma filha desmiolada e que fazia questão de que ela fosse
tratada com toda a dureza. Talvez até se oferecesse para ir a Caxias dar-lhe
umas bordoadas.
Começaria
por se desculpar perante o Professor Marcelo Caetano, não deixando margem para
dúvidas de que lhe saíra na rifa uma «filha má», apesar do empenho que ele
pusera na sua educação. Dedicou vários dias à escrita da carta, relendo e
corrigindo, até ela lhe parecer perfeita. Depois, num serão de quarta-feira,
aproveitou o facto de a mulher e o filho estarem a ver televisão, para se
posicionar no meio da sala e ler-lhes a missiva, do alto do seu orgulho, deixando
claro ao miúdo, ainda a acabar o liceu, a vergonha que a irmã fazia toda a
família passar.
Apesar de o rapaz se mostrar enfastiado por
aquela interrupção de um jogo de futebol, nada disse. Jogava-se a segunda mão
da meia-final da Taça das Taças, com participação portuguesa: o Sporting Clube
de Portugal enfrentava o Magdeburgo, da República Democrática Alemã. Ernesto
também gostava de futebol, mas a escrita da carta tornara-se na sua obsessão, atirando
o resto para segundo plano.
Depois
do jantar, tornou ao escritório e datou finalmente a
carta: 24 de abril de 1974. Enfiou-a, cheio de brio, num envelope, que endereçou
ao Presidente do Conselho de Ministros. No dia seguinte, metê-la-ia no correio.
Olhou
para o relógio. Eram quase onze horas. Ligou o rádio para ouvir as notícias.
Passava, mais uma vez, a canção interpretada por Paulo de Carvalho, que
representara Portugal no Festival da Eurovisão, havia quase duas semanas.
Ernesto não ligava a cantorias, mal sabia distinguir as canções umas das
outras. Mas, por acaso, conhecia alguns versos de E Depois do Adeus, tantas vezes a ouvia…
Tu vieste em flor
Eu te desfolhei
Tu te deste em amor
Eu nada te dei.
O Ernesto não tinha o dom da previsão afinado. Se tivesse, tinha poupado no papel de carta... e na tinta.
ResponderEliminar;)
E tempo ;)
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