Afonso
Reis Cabral possui um notável sentido de observação e descreve com incrível nitidez
o Portugal interior, a sua miséria e a sua ignorância. Mas a juventude também
se nota na sua escrita, o que, na minha opinião, está longe de ser uma
desvantagem. Há uma sinceridade e uma singeleza que uma pessoa vinte anos mais
velha não conseguiria (e o próprio escreverá de maneira diferente, quando
atingir essa idade). No início, até achei desnecessário que a sua personagem
principal (o narrador, já que o livro é escrito na primeira pessoa) tivesse à
volta de quarenta anos, mas talvez essa minha irritação tivesse a ver com a polémica
gerada pelas declarações
de António Lobo Antunes. Tivesse eu pegado no romance, sem saber a idade do
autor, quiçá ficasse a pensar que ele fosse realmente vinte anos mais velho… E,
à medida que se avança na leitura, vê-se que, por motivos de enredo, a pessoa
tem mesmo de ser daquela idade.
A
convivência com um irmão com o síndrome de Down é-nos transmitida de forma
pragmática, sem sentimentalismos, aliás, uma das razões que justificou a
atribuição do prémio. O autor aproveita inclusive essa relação para denunciar
duas situações. Em primeiro lugar, num paralelismo que achei muito
interessante, mostra-nos que os problemas que tal convivência gere estão longe
de serem exclusivos de uma família que alberga um membro com deficiência. Em
qualquer outra, de pessoas “normais”, se geram dependências e subjugação, se
encontra alguém que vive em função de outrem, numa espécie de servidão, que
pode durar quase uma vida. Em segundo lugar, foi muito interessante testemunhar
os ciúmes que o filho “normal” sentia do filho com deficiência. Claro que tendo um
filho com necessidades especiais, os pais se centram à volta dele, com
tendência a esquecer-se dos restantes. E é difícil explicar a uma criança
pequena que o irmão, apenas um ano mais novo, necessita de mais carinho e
cuidados do que ela. Não se pode mesmo explicar, a criança não o percebe. Achei
comovente a confissão do narrador de, em pequeno, ter desejado
ser o irmão, ter desejado possuir uma deficiência, a fim de ser mais acarinhado e amparado pelos pais. Impressionava-o, acima de tudo, o facto de o irmão poder fazer as
maiores travessuras, poder ser mal-agradecido e mostrar frieza de sentimentos,
sem ser admoestado, nem que ninguém ficasse ofendido com ele.
Trata-se, por isso, de um livro muito interessante e bem escrito. Porém, e sem querer revelar muitos pormenores, fiquei surpreendida com o grau de violência de que o narrador revelou ser capaz. As maiores desumanidades acontecem na própria família. E as maiores rivalidades, invejas, os maiores ciúmes, criam-se entre irmãos, independentemente de deficiências ou outro tipo de problemas. Pois é…
ResponderEliminarJá tinha lido alguma coisa sobre esse livro e esse autor. Obrigada por esta análise que termina com palavras que realmente se aplicam a muitos ambientes familiares. Existe, por vezes, muita violência no seio das famílias.Quase todos os dias vemos e ouvimos exemplos desses, que nos causam horror.
Bj
Olinda
Verdade, Olinda, é assustador o que por vezes se verifica no seio familiar...
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