«Infelizmente, o mito imperial estava nos livros, ilustrado
com as caras barbudas e façanhudas de todos os descobridores, de todos os
heróis. E tão arreigado que, ao contrário do que se pode pensar, desde o início
até ao fim das hostilidades, a generalidade do povo português não foi contra a
guerra: foi a favor, iludida pela propaganda, pela própria ignorância,
traumatizada pelo receio de que, uma vez perdidas as colónias, ainda ficaria
mais pobre. O pré-mensal que os soldados recebiam, uns dez mil escudos, e que
em parte remetiam às famílias, parecia-lhes um passo largo a caminho da
abundância. Por isso nas igrejas se rezava e se pedia o que só aos santos se
pode pedir, o impossível, a saber: que a guerra continuasse e que os filhos não
morressem nem fossem feridos».
(Página 97)
Lúcido. Provocador. Divertido. Imprescindível.
Evito usar adjetivos em excesso, mas, neste caso, são estas
as quatro palavras que me ocorrem para caracterizar este livro.
É lúcido como só um livro escrito por alguém que mora no
estrangeiro pode ser. Só com a distância devida se consegue olhar com tanta
objetividade para os seus compatriotas e o seu país, desprovido de
"rodriguinhos". Portugal – A
Flor e a Foice foi escrito em 1975, publicado, na altura, apenas na
Holanda, país onde vive José Rentes de Carvalho. A versão
portuguesa demorou quase quarenta anos a surgir: em 2014, por ocasião do 40º
aniversário da Revolução! Incompreensível.
É provocador e, por vezes, exagerado. Mas é um exagero
perfeitamente justificado, aquele tipo de exagero que nos ajuda a abrir os
olhos. Calculo, porém, que a crueza e a objetividade do escritor dificultem a leitura
a muitos portugueses. A mim, não. Adorei! Por igualmente viver no estrangeiro e
ter aprendido a olhar para o meu país sem as lentes afetivas que distorcem a
realidade?
É divertido, raramente me diverti tanto a ler um livro.
Podem chamar-lhe humor negro. Eu prefiro chamar-lhe ironia fina.
É imprescindível. Todos os portugueses deviam ler esta obra,
por muito que lhes custasse. Seria uma espécie de lavagem interior, um banho de
lucidez. Vêm-me à memória palavras do Ega, essa fascinante personagem de Eça,
n' Os Maias: «Sinto-me como se a
alma me tivesse caído a uma latrina! Preciso de um banho por dentro!»
Pois leiam este livro e purifiquem as vossas almas!
Aqui no blogue, não costumo dar estrelas aos livros que leio, ao contrário do que faço no Goodreads. Desta vez, abro uma exceção para dizer que este me merece cinco!
E aqui vai mais um cheirinho delicioso:
«Para eles [escritores] o povo era folclórico, estúpido,
pobre por culpa da sua própria ignorância. Quando se lêem os romances em que,
supostamente, o povo está presente, constata-se na generalidade este fenómeno
curioso: aquele povo não existe, é a imagem deformada obtida pelos escritores
que vão à província ver os camponeses como os curiosos vão a um jardim
zoológico ver os animais. A prova: na maioria, na grande maioria dos romances
portugueses, os personagens populares são postos a falar com empolamento
académico, ou então com a ênfase pesada dos maus dramas de teatro. Mais: aquela
linguagem não é a sua, autêntica e rude. Nada disso. É uma linguagem que o
escritor inventa, pedante, a mentir nos sentimentos e na sintaxe. A ponto que
com os romances portugueses sucede o seguinte: não parecem ter sido escritos
para serem lidos, ou com a intenção profunda de, ao agitar um problema da
sociedade, causarem uma mudança, ou corrigirem uma injustiça, mas simplesmente
para que o autor possa dar entrada naquele grupo de eleitos que se julga
diferente, e daí melhor».
(Página 134)