Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

28 de dezembro de 2022

Resistência em alemão (4)

 Christoph Probst

Sophie Scholl, Hans Scholl, Christoph Probst - Fot

Foto: George (Jürgen) Wittenstein/akg-images

Nesta fotografia, além dos irmãos Hans e Sophie Scholl, encontra-se o seu amigo e companheiro de luta do grupo “Rosa Branca” Christoph Probst (à direita). Esta fotografia acabou por ser premonitória, pois os três foram presos e executados no mesmo dia.

Christoph Hermann Ananda Probst nasceu em Novembro de 1919, filho de Hermann Probst, um engenheiro químico com ligações ao meio artístico, nomeadamente, com artistas proscritos pelo regime nazi. Hermann Probst era igualmente um estudioso do sânscrito e da filosofia indiana. O filho cresceu assim num meio valorizador da liberdade cultural e religiosa.

O destino de Christoph Probst foi particularmente trágico. Estudante de Medicina na Universidade Ludwig-Maximilian de Munique, dava ideias para a criação dos folhetos distribuídos clandestinamente pelo grupo "Rosa Branca". Mantinha-se, porém, afastado de um envolvimento mais comprometedor. Só por ocasião da Batalha de Estalinegrado, se decidiu a escrever ele próprio um texto, que deveria constar do sétimo folheto. Nunca chegaria a ser imprimido. Quando os irmãos Scholl foram descobertos a distribuir o sexto panfleto, Hans tinha no bolso o rascunho de Christoph Probst, contendo, entre outras frases de repúdio pelo nazismo: “Hitler e o seu regime têm de cair para que a Alemanha possa continuar a viver” (Hitler und sein Regime muss fallen, damit Deutschland weiter lebt).

Christoph Probst foi preso de imediato e, apesar de as atas dos interrogatórios provarem que Hans e Sophie tudo fizeram para tentar ilibar o amigo, assumindo a responsabilidade de todas as ações da “Rosa Branca”, ele viria a ser executado, pela guilhotina, apenas quatro dias depois, tal como eles. A tragicidade do seu destino, porém, não se resume a esta série de acasos infelizes. Casara em 1940, com apenas 21 anos, e já era pai, a razão porque se mantivera cauteloso em relação à sua participação na “Rosa Branca”. Quando foi executado, a 22 de Fevereiro de 1943, tinha dois filhos e uma filha, esta com apenas quatro semanas de vida. Herta Dohrn, a sua jovem mulher, encontrava-se ainda no hospital, devido a complicações desse último parto.

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Wikipedia

Momentos antes da sua execução, Christoph Probst foi, a seu pedido, baptizado catolicamente e está incluído no Martirológio alemão do século XX, publicação a cargo da Conferência Episcopal deste país. Além disso, consta igualmente da Neue Deutsche Biographie (NDB), uma publicação da Comissão Histórica da Academia Bávara das Ciências (Bayerische Akademie der Wissenschaften), que reúne biografias dignas de nota. As entradas são de autoria diversa; a de Christoph Probst é do seu filho mais velho, Michael Probst, nascido em 1940 (falecido 2010).

Além de algumas placas de homenagem, em diversos locais (como na Universidade Ludwig-Maximilian de Munique), Christoph Probst dá o nome a várias ruas e a três liceus (o que, aliás, comparado com os irmãos Scholl - cerca de duzentos liceus - soa a pouco).

14 de dezembro de 2022

Resistência em alemão (3)

 Alexander Schmorell

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Wikipedia

Alexander Schmorell nasceu em Setembro de 1917 em Orenburg, cidade russa perto da fronteira com o Cazaquistão. Tinha, porém, nacionalidade alemã, pois descendia de uma família da Prússia Oriental (território hoje dividido entre a Rússia e a Polónia). A sua mãe russa era filha de um padre ortodoxo e Alexander foi batizado na Igreja Ortodoxa. A senhora morreu, porém, quando o filho tinha apenas dois anos e, em 1921, Alexander acabou por ir com o pai médico e a sua segunda mulher para Munique.

Em 1935, conheceu Christoph Probst no liceu, que, tal como ele, haveria de pertencer ao grupo “Rosa Branca”. Em 1937, entrou para o serviço militar e, em 1938, participou na anexação da Áustria e na invasão da Checoslováquia. Já nessa altura terá entrado em conflito com a ideologia nazi.

Cumprido o serviço militar, e apesar de ser mais inclinado para as artes (pintura e escultura), iniciou, por influência do pai, o curso de Medicina em Hamburgo. Nas férias de Verão de 1940, teve de cumprir serviço como socorrista na frente francesa e, regressado à Alemanha, encetou os seus estudos em Munique, na Universidade Ludwig-Maximilian, onde conheceu Hans Scholl.

Tornou-se num dos principais membros do grupo “Rosa Branca”, tendo dividido com Hans Scholl a autoria de quatro folhetos, criados e distribuídos entre Maio e Julho de 1942. Nesta altura, os dois foram novamente mobilizados, desta vez, na frente do Leste, e, depois do seu regresso a Munique, o tom dos seus textos contra o regime nazi endureceram. Além disso, procuraram aumentar o seu raio de ação, também com a ajuda do Professor Kurt Huber, tentando contactos com Berlim. Alexander Schmorell distribuiu panfletos igualmente em várias cidades austríacas e, junto com Hans Scholl, pintou palavras de ordem como “Abaixo Hitler” e “Liberdade” em muros e paredes de Munique.

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Placa de homenagem a Alexander Schmorell na Universidade Ludwig-Maximilian de Munique

Depois da detenção dos irmãos Scholl e de Christoph Probst, Alexander Schmorell tentou, em vão, fugir para a Suíça com um passaporte falso. Nada mais lhe restou do que regressar a Munique, onde havia já um mandado de detenção em seu nome, com uma recompensa de 1000 marcos. A 24 de Fevereiro de 1943, o dia do enterro dos seus amigos executados, foi reconhecido num abrigo de ataque aéreo e detido, após denúncia. Condenado à morte por decapitação a 19 de Abril de 1943, foi executado a 13 de Julho seguinte, com vinte e cinco anos de idade.

Alexander Schmorell foi incluído na lista dos Novos Mártires da Igreja Ortodoxa Russa no estrangeiro, em Novembro de 1981. Em 2007, esta Igreja decidiu canonizá-lo, processo que se concluiu com a respetiva cerimónia, a 4 de Fevereiro de 2012, em Munique. O dia da sua morte, 13 de Julho, é o dia do Santo Alexandre de Munique, nesta liturgia

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Orthpedia

30 de novembro de 2022

Rsistência em alemão (2)

Sophie Scholl

As memórias de Traudl Junge, secretária de Hitler, serviram de base ao filme A Queda (Der Untergang), no qual o falecido Bruno Ganz interpreta o ditador nazi. No início de 1945, Traudl Junge foi uma das colaboradoras do Führer admitida no bunker construído por baixo da chancelaria do III Reich. No filme, ela é interpretada pela atriz Alexandra Maria Lara.

Terminada a guerra, os Aliados ilibaram-na de culpas, muito devido à sua idade. Traudl Junge tinha 22 anos, quando começou a trabalhar para Hitler, e 25, quando a guerra terminou. Pouco antes da sua morte, vi partes de uma entrevista sua, na televisão. Dizia ela que, durante muito tempo, assim acreditara ter sido: Hitler sempre fora simpático com ela, nova demais para tomar verdadeira consciência do carácter e das atrocidades cometidas em nome dele. Um dia, porém, numa placa de homenagem a Sophie Scholl, não conseguiu desviar o olhar da data de nascimento: 9 de Maio de 1921. Traudl Junge, nascida a 16 de Março de 1920, era um ano mais velha. E, pela primeira vez, aceitou aquilo que se esforçava por recalcar: a idade não pode servir de desculpa, ou pretexto, para fechar os olhos.

Sophie Scholl, Hans Scholl, Christoph Probst - Fot

Sophie Scholl com o irmão Hans (à esquerda) e Christoph Probst

Foto: George (Jürgen) Wittenstein/akg-images

À semelhança do seu irmão Hans, dois anos e meio mais velho, Sophia Magdalena „Sophie“ Scholl começou por se agradar do ideal comunitário propagado pelo partido nazi e ingressou, com treze anos, na BDM, uma organização de raparigas equivalente à Juventude Hitleriana. Os pais nunca simpatizaram com o regime de Hitler e não viam com bons olhos estas opções dos filhos. Mas deram-lhes liberdade de escolha. Passados dois anos, depois de terem conhecido as organizações por dentro, tanto o filho, como a filha, lhes viraram as costas.

A leitura das obras de Santo Agostinho de Hipona parece terem sido essenciais para uma nova orientação na vida de Sophie Scholl, em defesa dos valores cristãos. E, em Maio de 1942, ingressou nos cursos de Biologia e Filosofia na Universidade Ludwig-Maximilian de Munique, onde o irmão estudava Medicina. Assim entrou ela em contacto com opositores do nazismo.

Sophie ingressou no grupo “Rosa Branca” (Weiße Rose), participando na criação e distribuição dos folhetos, apesar de o irmão ter tentado afastá-la da oposição ativa ao regime. O sucesso do grupo, alargando os seus contactos e fazendo chegar os seus escritos a outras cidades, chamou a atenção da Gestapo. A temida polícia política iniciou uma averiguação quanto à origem dos escritos e, em Fevereiro de 1943, já desconfiava do meio estudantil de Munique.

A 18 desse mês, um funcionário da Universidade Ludwig-Maximilian descobriu os irmãos Scholl a distribuírem os panfletos. Depois de serem interrogados pela reitoria da Universidade, foram entregues à Gestapo. Das atas do interrogatório, consta que Sophie Scholl tudo terá feito para garantir serem ela e o irmão os mais altos responsáveis pelos textos distribuídos, a fim de proteger outros membros do grupo.

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Fotografia da Gestapo de Sophie Scholl, tirada depois da sua captura a 18 de Fevereiro de 1943

Os dois foram condenados à morte apenas quatro dias depois e a sentença, por decapitação (guilhotina), executada nesse mesmo 22 de Fevereiro de 1943. Sophie Scholl não tinha ainda completado os 22 anos.

Os irmãos Scholl, mas principalmente Sophie, já serviram de inspiração a vários filmes, livros, peças de teatro e exposições. Na Alemanha, há inúmeras ruas e praças com o seu nome, assim como quase duzentos liceus.

16 de novembro de 2022

Resistência em alemão (1)

Hans Scholl

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Direitos: C.H. Beck Verlag in "Flamme sein" von Robert Zoske

Em tempos conturbados, muito por causa de uma guerra em solo europeu, começo uma série sobre alemães que se opuseram ao nazismo, pois, embora haja conhecimento de alguns exemplos, penso ser, no geral, algo pouco conhecido fora da Alemanha. E é sempre bom relembrar exemplos de quem reage ao populismo/fascismo, mesmo que, num primeiro momento (em alguns casos) se deixasse ir na onda de quem promete soluções simples para problemas complicados, em nome de uma pretensa salvaguarda de valores.

Ao estudar este assunto, surpreendeu-me que muitos desses resistentes fossem prelados, Católicos e Protestantes, apesar de a Igreja ser acusada (com razão) de ter sido demasiado passiva, durante a 2ª Guerra Mundial. Mas houve, de facto, quem levantasse a voz em nome dos princípios cristãos, também muitos leigos. É o caso de Hans Fritz Scholl.

Os irmãos Scholl (Hans e Sophie) são dos mais conhecidos opositores ao nazismo, principalmente, Sophie Scholl, sobre a qual já se rodaram filmes e escreveram livros. Mas começo pelo irmão, pois ele foi um dos fundadores da “Rosa Branca” (Weiße Rose), um movimento estudantil baseado em princípios cristãos e humanistas, surgido em Junho de 1942, na Universidade Ludwig-Maximilian de Munique. Passado um ano, estava já aniquilado e os seus principais membros executados pelo regime nazi.

Sophie Scholl, Hans Scholl, Christoph Probst - Fot

Da esquerda para a direita: Hans Scholl, Sophie Scholl, Christoph Probst (os primeiros a serem executados)

Foto: George (Jürgen) Wittenstein/akg-images

O grupo clandestino “Rosa Branca” escrevia, imprimia e distribuía folhetos, nos quais dava conhecimento dos crimes do regime e apelava à oposição. As primeiras distribuições resumiam-se à região de Munique, depois, arranjaram quem o fizesse também noutras cidades. Pouco antes de o grupo ter sido descoberto, andava em contactos com outros grupos oposicionistas, tentando alargar a sua influência até à capital Berlim e a focos de oposição no próprio exército. Ao todo, imprimiram seis folhetos, cuja tiragem foi aumentando, chegando aos 9000 exemplares.

Hans Scholl, nascido em Setembro de 1918, entrou, com doze anos, para um grupo de jovens católicos. Antes de completar os quinze, e contra a vontade do pai, juntou-se à Juventude Hitleriana (a 15 de Abril de 1933). Dois anos mais tarde, porém, sentia-se já incomodado com o radicalismo e o princípio da obediência cega dos membros dessa organização juvenil.

Ao começar a estudar Medicina na Universidade Ludwig-Maximilian de Munique, em 1939, Hans Scholl entrou em contacto com Professores, Assistentes e estudantes que se regiam por princípios éticos cristãos e criticavam o regime. O ponto de viragem definitivo deu-se quando, nas férias, foi enviado como socorrista para a frente francesa, vivências que lhe consolidaram a forte oposição ao nazismo e à guerra por este iniciada.

Outras influências contribuíram para a sua transformação, como as mensagens do escritor Thomas Mann difundidas pela BBC, ou as pregações do bispo de Münster, Clemens August Graf von Galen, que denunciava a execução de doentes mentais pelo regime e apelava à oposição. Em Fevereiro de 1942, Hans Scholl começou a organizar fóruns de discussão com um pequeno e selecionado grupo de estudantes.

Já depois de o grupo “Rosa Branca” ter distribuído quatro folhetos, Hans Scholl e Alexander Schmorell (um outro membro) foram enviados como soldados para a frente leste. Nessas quinze semanas, os jovens foram confrontados com vários horrores, incluindo a maneira como os judeus eram tratados no Gueto de Varsóvia. Depois do seu regresso a Munique, em Novembro de 1942, Hans intensificou o tom usado nos folhetos, apelando à luta organizada contra o NSDAP (Partido Nazi), principalmente, depois da Batalha de Estalinegrado.

A 18 de Fevereiro de 1943 Hans e a irmã Sophie foram descobertos a distribuir os folhetos por um funcionário da Universidade que os entregou à Gestapo. Depois de quatro dias de interrogatório, foram condenados à morte por decapitação. A sentença foi executada ainda nesse dia (22 de Fevereiro). Diz-se que as últimas palavras de Hans Scholl foram “viva a liberdade” (Es lebe die Freiheit). Tinha 24 anos.

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Imagem da página do Liceu "Irmãos Scholl", em Waldkirch

13 de novembro de 2022

O talento das mulheres

Durante muitos séculos (ou seria melhor dizer milénios?), aceitava-se, como argumento para o suposto talento superior dos homens, dizer que era só comparar os feitos de uns e outras. 99% das obras-primas (fosse em literatura, pintura, música ou nas restantes artes), das invenções, das descobertas científicas, das obras de engenharia, etc. era de autoria de homens.

Por incrível que pareça, só nos últimos anos se começou a tomar consciência de que, salvo raras exceções, as mulheres não tinham, por um lado, acesso ao conhecimento e, por outro, andavam ocupadas com outras tarefas, impeditivas de se dedicarem a atividades consideradas mais prestigiantes. Era interessante verificar a contradição: se os homens se elogiavam por serem os maiores criadores e inventores, aplaudiam, ao mesmo tempo, as primeiras mulheres a serem aceites numa Universidade. Tinham a resposta à frente da cara e não a viam. Se isto é inteligência…

A esmagadora maioria das mulheres seguia-lhes aliás os passos. Mas havia exceções, mulheres com coragem para admitir que a educação que lhes impunham desde o berço só servia o universo masculino.

A bávara Emerenz Meier (1874-1928), pertencente a uma família de lavradores, foi uma dessas mulheres. Começou a escrever sobre a sua terra-natal ainda em criança e, em 1893, foram publicados os seus primeiros contos no periódico regional Passauer Donau. Três anos mais tarde, foi publicado o seu único livro. Mas também escreveu poemas, onde, muitas vezes, se destacava um tom irónico. Em Março de 1906, emigrou para os EUA com a sua mãe, juntando-se ao pai e às irmãs, no bairro alemão de Chicago. Casou em 1907, mas o marido morreu três anos mais tarde de tuberculose, deixando-a com o filho pequeno. Emerenz Meier não deixou de ser dona-de-casa, durante toda a sua vida e, durante a Lei Seca, fazia cerveja para si e os seus compatriotas.

No Jornal Católico da diocese de Hildesheim (edição nº 33, de 21-08-2022) deparei com um seu pequeno poema de traço irónico, o qual não resisto a traduzir (segue-se o original em alemão):

 

Tivesse Goethe de engrossar sopas,

De salgar almôndegas,

Schiller de limpar a pia,

Heine de remendar o que rompia,

Esfregar o chão, matar baratas,

Ah, os cavalheiros,

Não teriam sido

Esses poetas virtuosos.

 

Hätte Goethe Suppen schmalzen,

Klöße salzen,

Schiller Pfannen waschen müssen,

Heine nähen, was er verrissen,

Stuben scheuern, Wanzen morden,

Ach die Herren,

Alle wären

Keine großen Dichter worden.

 

Emerenz Meier (1874-1928)

24 de outubro de 2022

A Noite Não É Eterna

 


Este livro é sobre um dos capítulos negros da ditadura em que se transformaram os regimes de ideologia comunista. Lembro-me bem de, a seguir à queda do Muro de Berlim, virem à luz as atrocidades cometidas na Roménia de Ceaușescu, nomeadamente, os orfanatos, onde bebés e crianças vegetavam em condições inenarráveis. Como pode uma sociedade consentir em tal? Como podiam certas pessoas viver de consciência tranquila, tendo conhecimento daquele inferno? Os humanos podem realmente ser muito cruéis e não, o Holocausto, por mais horrível que tenha sido, não é o único exemplo de quão longe pode ir a perfídia.

Na altura, porém, dizia-se esses orfanatos romenos se destinarem “apenas” a crianças com deficiência, ou cujo nascimento era inoportuno. Ana Cristina Silva mostra-nos que havia outras razões para o fazer. Por exemplo: um pai acreditar na ideia propalada pelo governo da criação de um exército do povo, cujos soldados seriam treinados desde crianças. Nessa convicção, entrega o seu filho, de apenas três anos, a um orfanato, convicto de que ele assim receberá do Estado a educação certa. E fá-lo sem informar a mãe.

Ao mesmo tempo que alimenta a ideia fixa de matar o marido, Nadia lutará, primeiro, para encontrar o filho e, depois, para tentar libertá-lo. Ao descrever essa odisseia, a autora põe-nos a par do mundo de corrupção, chantagens e denúncias em que se baseava o regime de Ceaușescu. Uma sociedade podre, desumana, miserável, decadente (e ainda dizia a propaganda comunista que o Ocidente é que era decadente!).

Não querendo revelar demais sobre o enredo, fico-me por aqui, referindo apenas que o romance engloba igualmente a queda do regime comunista e a libertação da Roménia. Um livro escrito com sensibilidade, sob a perspetiva feminina, e que nos ensina muito. Se isto não são boas razões para o ler…

17 de outubro de 2022

Moby Dick

 


Não é novidade que Mobi Dick é uma obra gigantesca em todos os sentidos. No entanto, é a negação de muito do que se considera essencial para um bom romance. Li uma edição alemã (excelente tradução), contendo uma análise (no final) de Daniel Göske, Professor de Teoria da Literatura e de Literatura Norte-Americana na Universidade de Kassel, referindo vários aspetos que eu já havia considerado, durante a leitura. Alguns exemplos: a personagem de Queequeg, importantíssima no início, quase desaparece, assim que embarca no Pequod, junto com Ismael (o narrador); a partir da maneira como essas primeiras páginas estão construídas, somos também levados a pensar estarmos perante um romance de aventuras, mas Melville cedo nos confronta com descrições técnicas infindáveis, mais adequadas a obras de não-ficção; o final abrupto não combina igualmente com as centenas de páginas anteriores a explicarem pormenores. Terá Melville modificado o seu objetivo inicial, à medida que escrevia?

No meio de todo esse mar de letras, frases, parágrafos e capítulos, é, porém, admirável a quantidade de referências bíblicas e literárias, assim como de figuras de estilo e a combinação de várias linguagens específicas, como a dos baleeiros, da navegação, bem como a religiosa, a científica e a lírica. A isto se juntam cenas de antologia sobre a relação dos humanos com a Natureza, dos humanos entre si e aquilo que nos move. A própria sobrevivência? Apenas lucro? O desejo de controlar a Natureza, ao darmos conta da nossa pequenez? Razões de sobra para justificar o mito em que se tornou esta obra, talvez a mais importante da Literatura Norte-americana.

Herman Melville descreve como ninguém a caça à baleia. E conhecia ao pormenor a anatomia destes seres (descrevendo-a em muitas dessas páginas infindáveis). Porém, à luz dos conhecimentos de hoje, notamos ignorância em muitos aspetos. Em meados do século XIX, as técnicas de mergulho eram ainda muito primitivas, exaustivas e perigosas. Resumiam-se, por isso, a raríssimas tentativas, estávamos longe do mergulho “em série”, para não falar da existência de máquinas fotográficas e câmaras de filmagem. Para Melville, a vida abaixo da superfície das águas é um perfeito mistério. Muitas vezes, ele se pergunta para onde mergulham as baleias, o que fazem lá em baixo, em que mundo vivem. E ignorava igualmente o seu sistema fascinante de comunicação através de sons, que se sabe hoje ser complexo e permanecendo, em grande parte, misterioso.

Justiça seja feita ao autor: ele confere majestade e dignidade às baleias, transmitindo-nos a contradição entre a nossa admiração pelos animais e o desejo de os matar. Mas acaba por optar pela explicação mais fácil o que, confesso, me desiludiu: as baleias são animais sanguinários, capazes de afundar uma embarcação num ápice, é necessário aniquilá-las, a fim de que os homens não corram perigo.

Ora, qualquer animal que pese algumas toneladas é perigoso para os humanos. Principalmente, quando vê a sua vida ameaçada por esses mesmos humanos. E, por mais que admire esta obra, dou comigo a perguntar-me em que medida Melville aceitaria uma convivência pacífica estre baleias e humanos.

No seguinte vídeo, rodado através de um drone, na Argentina, é incrível a maneira delicada como a baleia toca no frágil caiaque da formiga humana. Bastava-lhe um movimento descuidado com a sua barbatana para dar cabo do sapiens. Mas não o faz. E nada por debaixo dele sem o derrubar. Denota uma delicadeza e um cálculo impressionantes.

Muito gostaria de saber o que Melville teria a dizer sobre esta cena. Será que a conseguia imaginar?

 

https://pt.euronews.com/2021/09/02/baleias-brincalhonas