Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.
A 19 de junho de 1263, o papa Urbano IV, atendendo às solicitações do clero português, levantou o interdito que imperava sobre o nosso reino desde 1255 e legitimou o consórcio de D. Afonso III.
À data do seu casamento com Beatriz de Castela, o pai de D. Dinis era ainda casado com Matilde de Boulogne. Foi acusado de bigamia pelo papa Alexandre IV, que, dois anos mais tarde, lançaria o interdito sobre Portugal. Um reino sob interdito estava proibido de celebrar missas e sacramentos (incluindo casamentos e batizados).
A complicada situação resolveu-se com a morte inesperada de Matilde.
Apenas quatro anos mais tarde, porém, devido aos conflitos entre o mesmo D. Afonso III e o clero, o papa lançaria novo interdito sobre Portugal (assunto a tratar numa outra ocasião).
Nota: ler aqui sobre os casamentos de D. Afonso III.
Terá sido no mês de junho de 1278 que D. Afonso III armou cavaleiro o infante D. Dinis, seu filho e herdeiro, de dezasseis anos. De seguida, atribuiu-lhe "casa autónoma". D. Afonso III estava já bastante doente e não viveu muito mais tempo.
Dom Afonso III tratara da entrega do testemunho durante todo aquele ano de 1278. Dinis fazia parte de uma comissão que regia o reino e onde figuravam o mordomo-mor João Peres de Aboim e o chanceler Estêvão Anes, sob a supervisão da rainha Dona Beatriz. O velho rei armara o filho cavaleiro, oferecendo-lhe uma belíssima espada, enfeitada no punho com duas esmeraldas e dois cristais e contendo na bainha dezasseis rubis e catorze safiras. Atribuíra-lhe igualmente casa autónoma, ou seja, cavaleiros vassalos próprios, assim como vários escudeiros, copeiro-mor, escanção-mor e reposteiro-mor, este último, responsável pelo património do príncipe.
(…)
Dinis recebeu ainda joias, pedras preciosas, tecidos finos e objetos de prata, como escudelas, trinchantes, pichéis, vasos e copos.
Do meu romance Dom Dinis, a quem chamaram O Lavrador
Nos meus primeiros tempos na Alemanha, tive receio de "desaprender" o meu inglês e passei a ler quase só livros nessa língua. Um dia, o meu marido chegou a casa com um romance histórico de Sharon Penman. Nenhum de nós conhecia a autora, mas ele tinha deparado com o livro em promoção e resolveu oferecer-mo.
Posso dizer que este livro mudou a minha vida. Apaixonei-me logo pela escrita desta autora. E, até hoje, ainda não encontrei melhor, em matéria de romances históricos. Além disso, foi ela que me levou a igualmente escrever este tipo de ficção.
Sharon (Kay) Penman não se limita a narrar os acontecimentos, ela puxa-nos para o meio da ação. É facílimo identificarmo-nos com as suas personagens. Não há vilões, nem santos, nos seus livros. Há pessoas, com todos os seus lados, bons e maus. Sharon Penman revela uma lucidez invrível sobre a natureza humana.
Depois de ler seis livros dela (alguns, duas vezes) estive cerca de vinte anos afastada das suas obras. Em fins do ano passado, descobri, na minha estante, um romance ainda por ler: Time and Chance, o segundo volume de uma saga de cinco, sobre a família de Henrique II de Inglaterra e Leonor da Aquitânia. Peguei nele. E "a febre" voltou. Soube que Sharon Penman tinha entretanto falecido, mas não descansei enquanto não arranjei os três volumes que me faltavam. A sua aquisição provocou-me um entusiasmo raramente sentido, em matéria de livros.
Leonor da Aquitânia e Henrique II provocaram alterações profundas, na Europa medieval. Naquela altura, o rei de Inglaterra era igualmente duque da Normandia. Henrique II, o primeiro rei Plantageneta, herdou ainda de seu pai os condados de Anjou e da Bretanha e, por casamento com Leonor, tornou-se conde de Poitou e duque da Aquitânia. Era, porém, vassalo do rei de França, por esses territórios, criando uma situação bizarra. Por um lado, muita da França atual pertencia-lhe, possuía mais terras do que o próprio monarca francês. Por outro, custava-lhe, como rei de Inglaterra, ser vassalo do de França. Para complicar mais ainda, Luís VII tinha sido o primeiro marido de Leonor da Aquitânia. O casal conseguiu o divórcio e Leonor foi, até hoje, a única mulher a ser rainha de França e de Inglaterra. Mas a rivalidade entre os dois "maridos" foi uma constante, enquanto viveram.
Leonor e Henrique fundaram uma das dinastias europeias mais poderosas: os Plantagenetas, que regeram sobre a Inglaterra durante cerca de 300 anos. Além disso, foram pais de dois dos mais famosos monarcas europeus: Ricardo Coração de Leão e João Sem-Terra.
Conhecemos estas personagens, sobretudo, através dos filmes e séries sobre Robin dos Bosques. Essas narrativas nada têm a ver com a verdade histórica. Não há a mínima referência a essa figura, nas vidas de Ricardo e João. Aliás, Robin dos Bosques é uma personagem mítica, nem se sabe se existiu. E, no caso de ter existido, quando viveu.
Henrique e Leonor tiveram oito filhos. Três eram raparigas, uma delas casou com Afonso VIII de Castela. Dos cinco rapazes, um morreu em criança, mais dois ainda jovens. Por isso, à altura da morte do pai, apenas Ricardo e João eram vivos. Dez anos os separavam.
Admira-me que a saga desta família ainda não tenha sido filmada. Nada ficaria a dever à Guerra dos Tronos, com as suas intrigas, rivalidades e guerras constantes. Depois de cerca de quinze anos de casamento, a forte paixão entre Henrique e Leonor foi-se transformando em ódio. Os dois guerrearam-se e instigaram os filhos a tomarem posição, ou contra o pai, ou contra a mãe, conforme os casos. Ricardo era o preferido de Leonor e lutou sempre contra o pai. A situação chegou a tal ponto, que Leonor esteve presa durante dezasseis anos, por ordem do marido. Mas sobreviveu-lhe, apesar de ser dez anos mais velha. Leonor viveu mais de oitenta anos. Assim que o marido morreu, Ricardo Coração de Leão, feito rei, ordenou a libertação da mãe.
Túmulos de Henrique II e Leonor da Aquitânia, na Abadia de Fontevraud*
Ricardo e João odiavam-se, apesar de o mais novo ter ficado a tomar conta do trono inglês, quando o Coração de Leão partiu para as cruzadas (este é o fundo verdadeiro das histórias de Robin dos Bosques). João cobiçava a coroa. E esta acabou mesmo por lhe cair no regaço! Ricardo morreu, com cerca de quarenta anos, atingido por uma flecha. O grande guerreiro, que regressara das cruzadas com uma fama inigualável, acabou por perecer numa luta "menor", uma escaramuça contra um seu vassalo francês.
Túmulo de Ricardo Coração de Leão, na Abadia de Fontevraud*
João nem acreditava na sua sorte. Ricardo não deixou descendentes, apesar de ter sido casado. Terá tido um filho ilegítimo, mas ainda não esclareci esse aspeto, pois ainda não li a saga toda. Aliás, a sua vida sexual é objeto de especulações. Diz-se que se interessava mais por guerra do que por mulheres e, claro, põe-se a hipótese de ter sido homossexual.
João Sem-Terra (assim apelidado por ter sido o mais novo de todos os irmãos, com poucas hipóteses de conseguir herança) ficou conhecido por ter assinado a Magna Charta, considerado assim o "pai" da representação parlamentar. De resto, perdeu todos os territórios franceses pertencentes ao progenitor e quase lhe escapava igualmente a coroa inglesa. Mas foi ele quem deu seguimento à dinastia Plantageneta.
Viajo regularmente de carro entre a Alemanha e Portugal. Na zona de Tours, vejo a placa mencionando a Abadia de Fontevraud e, muitas vezes, penso ser uma pena passar ali tão perto e não a ir visitar. Lá se encontram os túmulos de Leonor da Aquitânia, Henrique II, Ricardo Coração de Leão e Isabel de Angoulême, que foi rainha de Inglaterra, por ter sido casada com João Sem-Terra.
Perante o túmulo de Ricardo Coração de Leão*
Agora, que ando a ler esta incrível saga, não pude deixar de ir. E senti a emoção de finalmente conhecer pessoas que admirava há muito tempo. Foi uma experiência única.
Uma palavra para a ironia de Ricardo e Isabel de Angoulême jazerem lado a lado. Depois de enviuvar do rei João, Isabel já tinha cinco filhos, mas apenas cerca de trinta anos de idade. Regressou à sua terra-natal e casou com o conde de Lusignan, de quem teve mais oito filhos. E acabou por ficar sepultada em Fontevraud, na altura, um dos maiores centros religiosos franceses.
Túmulos de Isabel de Angoulême e Ricardo Coração de Leão, na Abadia de Fontevraud*
O rei que não deixou descendência ficou, para a eternidade, ao lado da cunhada, a esposa do irmão que odiava. O certo é que Isabel de Angoulême foi mãe, avó, bisavó, trisavó, etc. dos reis que regeram sobre a Inglaterra, por mais de dois séculos.
João Sem-Terra está sepultado na catedral inglesa de Worcester, que visitei em 2003.
Túmulo de João Sem-Terra (John Lackland) na Catedral de Worcester*
Nota: há apenas um livro de Sharon Kay Penman traduzido em português: Quando Cristo e os Seus Santos Adormeceram, o primeiro volume desta saga, sobre a guerra civil inglesa, travada entre a mãe de Henrique II, a imperatriz Maude, e o seu primo, o rei Estêvão (Stephen).