Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

17 de janeiro de 2011

D. Dinis e as cantigas de escárnio


Todos sabemos que D. Dinis foi poeta, que escreveu lindas cantigas de amor e de amigo. Mas pouca gente conhece a sua faceta sarcástica, que, à época, se expressava nas cantigas de escárnio e mal-dizer.

Aproveitei uma delas, por ocasião de uma estadia maçadora no Paço de D. Vicente, bispo do Porto:


Assim se viu Dinis rodeado de fidalgos pomposos, a concorrer pela sua atenção, tentando impressioná-lo com as suas proezas. Não que não estivesse habituado a tal, mas os convívios no Paço episcopal decorriam sem música. Aquele não era o local indicado para fazer a corte às senhoras, através de cantigas trovadorescas, para já não falar de uma ou outra dança.
Naquele serão, Dinis lembrou-se de uma cantiga de escárnio que compusera sobre um fidalgo de província, por ele apelidado de D. Foam e que falava intermitentemente, sem se aperceber do cansaço e do tédio que causava ao seu soberano:

                                   U noutro dia seve Dom Foam,
                                   a mi começou gram noj’ a crecer
                                   de muitas cousas que lh’ oí dizer.
                                   Diss’ el: - «Ir-m’ ei ca já se deitaram»;
                                   e dix’ eu: - «Boa ventura hajades
                                   porque vos ides e me leixades».

                                   E muit’ enfadado do seu parlar
                                   sevi gram peça, se mi valha Deus,
                                   e tosquiava estes olhos meus.
                                   E quand’ el disse: - «Ir-me quer’ eu deitar»
                                   e dix’ eu: - «Bõa ventura hajades
                                   porque vos ides e me leixades».

                                   El seve muit’ e diss’ e porfiou,
                                   e a mim creceu gram nojo por em,
                                   e nom soub’ el se x’ era mal se bem.
                                   E quand’ el disse: - «Já m’ eu deitar vou»
                                   e dix’ eu: - «Bõa ventura hajades
                                   porque vos ides e me leixades».

O Rei Lavrador também se serviu deste seu talento para ridicularizar fidalgos que protestavam contra a concentração do poder na Coroa:


               Numa altura em que os nobres encetavam novos protestos contra os resultados das inquirições, Dinis escarnecia de um tal João Bolo, ridicularizando os fidalgos de província que desobedeciam aos meirinhos régios, usando de todos os subterfúgios para se furtarem às suas obrigações. Dizia o rei na sua cantiga que João Bolo vivia há um ano escondido, com medo de um meirinho que lhe descobrira uma mula roubada. O fidalgote contrapunha que, se arranjasse bom advogado, provaria perante qualquer juiz que a mula lhe pertencia, pois tinha testemunhas em como a criara desde que nascera, em casa de sua mãe. A melhor testemunha, dizia ele, era mestre Reinel, que tratara de um inchaço que a mula tivera no toutiço:

                                  
Joam Bolo jouv’ em ũa pousada
                                   bem dês ogano que da era passou
                                    com medo do meirinho que lh’ achou
                                   ũa mua que tragia negada;
                                   pero diz el que, se lhi for mester,
                                   que provará ante qual juiz quer
                                   que a trouxe sempre dês que foi nada.


                                   Nom na perderá, se houver bom vogado,
                                   pois el pode per enquisas põer
                                   como lha virom criar e trager
                                   en cas sa madr’, u foi el criado;
                                   e provará per maestre Reinel
                                   que lha gardou bem dez meses daquel
                                   cerro, ou bem doze, que trag’ inchado.

6 comentários:

antonio ganhão disse...

Hum! Não se arranja a versão em português?

Cristina Torrão disse...

Bem, eu, pelo menos, disse do que tratavam as cantigas... :)

Anónimo disse...

Mas em Galego é que tem graça!

Gostei daqui ;)

Josimar disse...

Olha antonio, vocÊ quer este artigo em português né? faz assim: vai lá no google e pesquisa: Google tradutor. ai voce escolhe o idioma que quiser que este arquivo apareça.... copie este artigo do blog e jogue lá para traduzir

J.Software-ftpStory

José Luís disse...

Isto está em galaico-português, que é a língua a partir da qual o galego e o português descendem.

Cristina Torrão disse...

Exato, José Luís, com o acrescento de que o galaico-português continuou, como língua da poesia da época (cantigas de amor, amigo e escárnio e mal-dizer), já depois de se terem desenvolvido as várias línguas ibéricas (português, galego, castelhano, etc.). Afonso X de Castela, denominado "O Sábio", avô de D. Dinis, foi igualmente um grande poeta e utilizou sempre o galaico-português para as suas criacöes.