Com este absurdo da praia do
Meco, lembrei-me de uma outra ocorrência relacionada com a tão propalada praxe,
que não teve o mesmo desfecho trágico, mas que, devido à sua estupidez (não
encontro outra palavra), me deixou estupefacta. Aliás, Pedro
Correia já se referiu ao assunto no Delito de Opinião.
Na verdade, eu nada mais lembrava
do que um artigo na revista Visão,
que assinava, antes de ter internet,
para me pôr a par do que se passava nesse nosso jardim que, pelos vistos,
nem é tão florido quanto julgamos. Decorria o ano de 2002, quando uma caloira
da Escola Superior Agrária de Santarém foi esfregada com bosta de porco e, como
se isto não bastasse, ainda lhe meteram a cabeça num bacio cheio de fezes.
A estudante resolveu escrever uma
carta ao ministro que tutelava o ensino superior e acionou judicialmente os
responsáveis pela sua humilhação. Caiu o Carmo e a Trindade! Nesse artigo da Visão, que me ficou na memória, tal
indignação e revolta me causou, os defensores da praxe da dita Escola Superior fartaram-se
de caluniar a estudante, que era uma «queixinhas», uma débil do ponto de vista
psicológico, que não entendia o espírito da praxe e que, pelos vistos, não
possuía arcaboiço para enfrentar o curso que se propunha tirar.
Ora, a moça pretendia ser
veterinária. E, segundo um professor da dita Escola Superior (poderia até ter
sido o diretor, já não me recordo), aquilo tinha sido um procedimento
totalmente inofensivo. Um candidato a veterinário tinha de se habituar a levar
com bosta na cara! Como justificação, dava a conhecer que, muitas vezes,
examinando uma vaca que estivesse prenha, o animal não se escusava a mandar um
jato do respetivo material na cara do doutor.
Acho incrível que um professor
daquele nível de ensino não soubesse distinguir o que estava em causa. Claro
que os veterinários, ou os médicos em geral, têm de ter estômago. Por isso
mesmo, eu era incapaz de exercer qualquer desses ofícios. Mas há uma grande
diferença entre um acidente do tipo descrito com a vaca e uma humilhação em
praça pública, propositada, sem qualquer respeito pela dignidade do caloiro,
que, caso os “doutores” ainda não tenham percebido, é um ser humano, tal como
eles.
Com o assunto na ordem do dia,
tem-se lido muito sobre ele, inclusive, de defensores da praxe, mais razoáveis,
que prescindem de métodos drásticos. Até acredito que haja gente que pratique
essa tradição com mais responsabilidade. Mas não há dúvida de que se vai/foi
longe demais. Se está fora de questão abolir a praxe (que eu nunca apreciei nem
pratiquei, nem sequer tive traje de estudante), então que se legisle sobre o
assunto, proibindo práticas que possam atentar contra a dignidade humana, ou
representar perigo de vida! Chega de entender a praxe como uma coisa só de
estudantes universitários, deixando-os atuar a seu bel-prazer! E outra coisa, muito
importante: ninguém deveria ser praxado contra a sua vontade!
A propósito do livro Os Últimos Presos do Estado Novo, da jornalista
Joana Pereira Bastos, eu perguntava: quantos
de nós estariam dispostos a cometer atrocidades, se tais atos fossem aceites e
legitimados pela lei? Pois é isso mesmo que se passa com as praxes. Uma coisa
aceite, na qual ninguém se mete, isso é lá com os estudantes, futuros doutores,
etc. No fundo, não estará em causa estes atos serem cometidos por jovens inconscientes.
O cerne da questão é que muitos de nós, ao abrigo de uma qualquer tradição aceite, são capazes das atitudes mais absurdas, hediondas e perigosas.
A caloira de 2002 conseguiu que lhe
dessem razão em tribunal, embora as penas para os prevaricadores fossem irrisórias,
o processo tivesse demorado uns incríveis seis anos a ser resolvido e ela ter sido
forçada a mudar de estabelecimento de ensino. Mas, pelo menos, sobreviveu e
espero que tenha alcançado os seus objetivos. As vítimas da praia do Meco, infelizmente,
não tiveram essa sorte.
Completamente de acordo, Cristina.
ResponderEliminarSalvo raras exceções, PRAXE É ESTUPIDEZ.
Já agora uma rara exceção: em Bragança, alguns caloiros (não me lembro de que curso) foram praxados da seguinte forma: tinham de percorrer as ruas da cidade pedindo, porta a porta, donativos em forma de produtos alimentares para uma instituição de apoio social.
Isto sim, é criatividade e inteligência.
Beijinhos, Cristina
Eu sou a favor da praxe, mas completamente contra essas praxes que ultrapassam os limites (como essa referida da aluna da Escola Superior Agrária de Santarém).
ResponderEliminarMas a questão da praia do Meco é complicada de gerir, pois, se virmos bem, eles eram todos pertencentes à Comissão de Praxe e foram a essa praxe de livre vontade (veja-se que alugaram casa lá e tudo!). Obviamente que é condenável o final trágico, mas acho que os dois exemplos são bem diferentes.
Estou em total sintonia com a opinião dos anteriores comentadores. Há praxes e praxes, umas hediondas, outras com uma boa dose de criatividade. Acabar com as praxes não é solução para um problema que tem a ver, sobretudo, com bom senso e respeito.
ResponderEliminarUm dos meus filhos, também fez o curso na Escola Superior Agrária de Santarém e também quiseram praxa-lo nos estábulos das vacas, mas ele mandou-os dar uma volta ao bilhar grande. Mas pronto, o rapaz é alto e espadaúdo e isso talvez tenha servido como elemento dissuasor para os praxadores terem mudado de agulha.
Manuel, esse é um exemplo muito interessante. Como em todo o lado, há gente razoável e há gente que se aproveita das ocasiões para soltar os seus instintos (ou será melhor dizer satisfazer necessidades) maléficos.
ResponderEliminarBeijinhos
Isabel, é verdade que os dois exemplos são diferentes. Mas não há dúvida de que em nome da praxe se fazem barbaridades. Por isso, acho que se deviam criar certas regras. E, mesmo admitindo que é um assunto que só diz respeito a estudantes, podiam reunir-se as Comissões de Praxe de todo o país (ou, pelo menos, a nível regional) para debaterem o assunto e estabelecerem quais regras não se deviam infringir. Era no seu interesse (das Comissões), pois acabava a arbitrariedade e, em casos destes, não se culpava o todo pela parte. Sei que há diferenças, cada estabelecimento tem as suas tradições, mas deviam respeitar-se certos princípios. E, muito importante, respeitar quem não quer participar. Tive alguns problemas por não querer ser praxada, nem participar em praxes.
Bartolomeu, infelizmente, nem todos são capazes de bom senso e respeito, deviam ser estabelecidas regras.
Tens então um filho alto e espadaúdo, hem? ;)
Tenho dois filhos, ambos mais altos que eu, mas o mais velho é mais forte que o mais novo, talvez por ter praticado mais desportos, o mais novo sempre foi mais calinas - dedicou-se mais ao charme em lugar dos músculos. ;)))
ResponderEliminarA mim custa-me perceber como as praxes podem ser entendidas como uma forma de integração dos alunos recém-chegados. O facto de nunca ter frequentado o meio universitário pode levar a esta minha incompreensão em relação a qualquer tipo de praxe. Existem as violentas e as menos violentas, mas qualquer uma delas tem o propósito de humilhar aqueles que acaba por ser o inferior.
ResponderEliminarEu também acho que essa coisa que integrar os alunos é uma grande treta. Dizem, como já vi em alguns textos, que há estudantes vindos da província para a grande cidade, que não conhecem ninguém... Essa conversa talvez já tenha tido a sua veracidade, mas, hoje em dia? Além disso, cedo se estabelecem amizades, quanto mais não seja, entre aqueles que se encontram nas mesmas circunstâncias. Em outros níveis de ensino, não há praxes. E oa alunos chegados de novo a uma escola não se integram rapidamente?
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