Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

30 de setembro de 2014

Os Alemães e o Humor

Envolvi-me há dias, no Horas Extraordinárias, numa conversa sobre os alemães terem ou não humor. A propósito de se brincar com coisas sérias, dei o exemplo da série «'Allo 'Allo», muito apreciada em Portugal, mas incompreendida na Alemanha (e, segundo ouvi dizer, também mal vista em França, mas disso não tenho a certeza). Logo houve quem dissesse que os alemães não têm humor, sendo sobretudo incapazes de se rirem de si próprios, coisa em que nós portugueses, com a nossa boa disposição, somos exímios.

Como sempre, acho que as pessoas caem facilmente em clichés. Para já, nós portugueses não somos nenhuns campeões mundiais em boa disposição e humor fino. Basta lembrar que o fado, um poço de melancolia e saudade, é a música que melhor nos caracteriza. E que a maioria dos nossos compatriotas gosta é de humor grosseiro, nada subtil.

Por outro lado, os alemães têm excelentes humoristas e desde meados dos anos 1990 tem-se vindo a desenvolver a stand-up comedy. Também a figura de Hitler tem servido a comicidade e a paródia, seja na literatura (Ele Está de Volta), seja no cinema, com o filme Mein Führer – Die wirklich wahrste Wahrheit über Adolf Hitler, do realizador Dani Levy e com Helge Schneider no papel principal, um artista multifacetado com um humor muito nonsense.

Mas os clichés têm sempre um fundo de verdade. E, pensando nos meus sogros alemães, já falecidos, recordo que eles tinham dificuldade em entender os novos humoristas. As gerações mais antigas não encontravam realmente grande espaço para alguns tipos de humor, apreciavam maioritariamente trocadilhos inofensivos de palavras. E tinham problemas em entender a ironia.

Penso que parte da explicação estará em Martinho Lutero. Metade dos alemães são luteranos, a outra metade é católica. Ao desprezar o Carnaval e todas as atividades relativas ao Entrudo, Martinho Lutero terá acabado com o sentido de humor de muitos alemães. Ainda hoje os alemães do Norte, maioritariamente luteranos, continuam a abominar festejos carnavalescos, enquanto em muitas regiões do Centro e do Sul, de maioria católica, se goza o Carnaval. É um Carnaval diferente do nosso, mas com muita tradição, centrada na figura do "bôbo da corte", com barrete de guizos e tudo, e onde impera a piada política. Também se fazem cortejos, sendo os mais famosos os de Colónia e Mainz (Mogúncia). Na Baviera, até há figuras que me fazem lembrar os caretos transmontanos de Podence! Já me perguntei de onde virá essa parecença, seria algo interessante de pesquisar.

O Carnaval alemão pode parecer estranho aos portugueses. Também eu, nos primeiros anos que aqui passei, achei que não era Carnaval "a sério". Depois, dei-me conta de que esse meu preconceito se devia à ausência de sambas, batuques e bailarinas em biquini e tomei consciência de que o problema está em nós nos termos habituado a um Carnaval "abrasileirado". Passei então a admirar mais a tradição alemã, que se mantém genuína, com bôbos, caretos e disfarces.

Mas tudo isto para dizer que Martinho Lutero bem pode ter sido o responsável pela perda da capacidade humorística de muitos alemães. Felizmente, estão a recuperá-la.


26 de setembro de 2014

Entre Cós e Alpedriz


Agradeço ao José Cipriano Catarino ter-me proporcionado a leitura deste livro, só disponível em ebook na LeYa Online, em edição de autor. Infelizmente, digo eu, porque é um excelente romance, honesto e realista, sobre a vida numa freguesia do concelho de Alcobaça, ao longo do século XX. Criando a personagem da Joaquina, mulher que nasceu no início desse século, morrendo já com 104 anos, José Cipriano Catarino põe-nos em contacto com o Portugal aldeão.

Mas não com um Portugal idealizado, bucólico, onde ainda não chegou a civilização com os seus barulhos e setresses, vivendo em comunhão com a Natureza. Trata-se de um Portugal onde existe «o fedor da "mijaceira" escorrendo dos currais dos porcos, as nuvens de moscas envolvendo animais e pessoas, as melgas, a que chamamos belfos, o cheiro a ranço das candeias, a alimentação pobre e mal confeccionada»; o Portugal onde se lava «a cabeça dos cachopos, catando cuidadosamente lêndeas»; o Portugal onde «para pobre dia de festa é dia de bebedeira de caixão à cova»; o Portugal da «luta pela sobrevivência tão dura que hoje a não conseguimos sequer imaginar»; o Portugal onde «serão precisas gerações para os homens da terra serem vistos em público ao lado das respectivas mulheres»; o Portugal da «solidão desesperadora» de uma mulher, apesar de ter «mudado de uma cidade onde já ninguém a conhecia para uma aldeia onde toda a gente a conhecia bem de mais» e que acaba por se atirar a um poço; o Portugal onde se exercia violência extrema na escola primária; o Portugal de «crianças semi-nuas, vestindo apenas uma camisola interior que já não lhes tapa a barriga inchada de subnutrição, descalças sobre geadas de Fevereiro, arrancando lâminas de gelo da superfície de poças de água, o ranho a escorrer pelas faces»; o Portugal onde morrem jovens por se estamparem contra um pinheiro, perdidos de bêbados, de regresso de uma borga.

Depois de lermos este belo livro, perguntamo-nos porque não foi aproveitado por uma editora conhecida, com bom poder de distribuição e de marketing.

Enfim, também isto é Portugal. Entre Cós e Alpedriz será apenas lido por meia dúzia de felizardos, onde me incluo, compreendendo bem as palavras com que o autor encerra a sua obra:

«A quem interessará ela [esta história], sem um escândalo para o editor, sem uma alegria para os críticos, sem metáforas para o leitor decifrar, sentindo-se, talvez, inteligente por ter encontrado o sentido oculto das coisas, sem ideologias a legitimá-la nem moral a extrair? E, afinal, que importância tem isso? Sobre as casas em ruínas edificarão outras, entre Cós e Alpedriz, onde há muito se não ouve azurrar nenhum candidato a juíz, continuará a viver gente talvez feliz, geração após geração, misturando vidas e histórias que o vento dispersará e reunirá numa só, tal como o coveiro, passados os sete anos regulamentares, amontoa numa só campa os ossos dos esqueletos que outrora se moveram e falaram dando corpo e alma a vidas perdidas no tempo».

Lembro-me de certa vez, sendo eu adolescente, o meu pai ter ajudado a reorganizar o cemitério da sua aldeia transmontana. Abriram-se covas e tiraram-se de lá os esqueletos, algumas caveiras ainda com dentes e cabelo, a fim de arranjar lugar para novas campas. Aquilo impressionou-me, pois sempre ouvira dizer que as campas serviam para eternizar a lembrança dos nossos antepassados, que continuariam a ser lembrados e honrados, eternamente, pelos parentes, a cada visita ao cemitério. Ao fazer tal referência, o meu pai despachou-me: «ora, algumas dessas pessoas já tinham sido enterradas há mais de cem anos». E eu perguntei-me se era essa a ideia que ele tinha de eternidade: cem anos!

Aconselho a todos os leitores deste blogue que tiverem a possibilidade de comprar um ebook (sigam o link) a fazer parte do grupo dos felizardos leitores deste livro!


23 de setembro de 2014

Excerto (3)


O passeio de carro foi breve, interrompido mais cedo do que o previsto, que a Joaquina enjoou e não parava de vomitar a cada solavanco da estrada esburacada, a cada curva, a cada travagem brusca para não atropelar os garotos que corriam à frente do automóvel, atraídos pela buzina que, no entanto, os alertava para os perigos que corriam, a cada guinada para evitar a vaca ou a cabra que atravessava indolentemente a estrada, ou a velha embasbacada, paralisada pelo medo do engenho diabólico que corria direito a ela, envolto em fumarolas e trovões como o próprio Lúcifer.
(...)
Os primos partiram ainda nesse mesmo dia, ansiosos por deixar para trás o fedor da "mijaceira" escorrendo dos currais dos porcos, as nuvens de moscas envolvendo animais e pessoas, as melgas, a que chamamos belfos, o cheiro a ranço das candeias, a alimentação pobre e mal confeccionada, os olhares basbaques com que fitavam Simão, comentando alta voz: - Que pena ser pretinho, um homem tão perfeito.


22 de setembro de 2014

15 de setembro de 2014

11 de setembro de 2014

Licor de Chamoa

Como já aqui referi, Afonso Henriques, quando ia pelos vinte e oito anos,  ter-se-á perdido de amores por D. Châmoa (ou Flâmula) Gomes, pertencente à alta nobreza galega. Os dois tiveram, pelo menos, um filho e o nosso primeiro rei talvez tenha tencionado casar com ela. Mas deparou com três grandes obstáculos:
1º Passado pouco recomendável para esposa de um monarca.
2º Sobrinha de Fernão Peres de Trava, o que queria dizer que o sucessor do nosso primeiro rei pertenceria, neste caso, à família galega que tantas dores de cabeça dera aos barões portucalenses.
3º Fizera-se monja em Vairão, depois de enviuvar, pelo que o casamento lhe estava proibido.

Se quiserem ler mais sobre este caso, por mim explorado no romance Afonso Henriques - o Homem, podem fazê-lo aqui, aqui e aqui.

Situei uma das cenas desta relação amorosa no castelo de Santa Maria da Feira. Soube agora que um empresário feirense ligado à restauração, Miguel Bernardes, liderou o processo de criação e produção do licor de Chamoa, lançado em agosto de 2013 e tornado na bebida oficial da Viagem Medieval, que se realiza todos os anos em terras de Santa Maria. É aromatizado com frutos silvestres, servido em pequenas porções (copinhos) e obedece a rituais muito próprios, associados ao histórico amor de Afonso Henriques e Châmoa Gomes.


 


O BizFeira, projeto de promoção e internacionalização de empresas e negócios de Santa Maria da Feira, tem vindo a promover o licor por todo o país e até no estrangeiro

Quem diria que o meu romance teria tanto impacto e serviria de tanta inspiração ;-)


9 de setembro de 2014

Nada como ler os clássicos (13)

E todos, de entre a fenda das cortinas, como soldados na fresta de uma cidadela, espreitavam o largo, que o sol das quatro horas dourava, por sobre os telhados musgosos da cordoaria. Do lado da Rua das Pegas, as duas Lousadas, muito esgalgadas, muito sacudidas, ambas com manteletes curtos de seda preta e vidrilhos, ambas com guarda-sóis de xadrezinho desbotado, avançavam, estirando pelo largo empedrado duas sombras agudas.
As duas manas Lousadas! Secas, escuras e gárrulas como cigarras, desde longos anos, em Oliveira, eram elas as esquadrinhadoras de todas as vidas, as espalhadoras de todas as maledicências, as tecedeiras de todas as intrigas. E na desditosa cidade não existia nódoa, pecha, bule rachado, coração dorido, algibeira arrasada, janela entreaberta, poeira a um canto, vulto a uma esquina, chapéu estreado na missa, bolo encomendado nas Matildes, que os seus quatro olhinhos furantes de azeviche sujo não descortinassem - e que a sua solta língua, entre os dentes ralos, não comentasse com malícia estridente! Delas surdiam todas as cartas anónimas que infestavam o distrito; as pessoas devotas consideravam como penitências essas visitas, em que elas durante horas galravam, abanando os braços escanifrados; e sempre por onde elas passassem ficava latejando um sulco de desconfiança e receio. Mas quem ousaria rechaçar as duas manas Lousadas? Eram filhas do decrépito e venerando general Lousada; eram parentas do bispo; eram poderosas na poderosa confraria do Senhor dos Passos da Penha. E depois duma castidade tão rígida, tão antiga e tão ressequida, e por elas tão espaventosamente alardeada - que o Marcolino do Independente as alcunhara de «Duas Mil Virgens».

In "A Ilustre Casa de Ramires", Eça de Queirós


8 de setembro de 2014

4 de setembro de 2014

Os Azares de Valdemar Sorte Grande


A personagem principal deste romance, natural da Figueira da Foz, nasceu a 25 de abril de 1874, uma escolha interessante por parte do autor, já que pretende retratar o tempo da passagem da Monarquia à República. Sorte Grande, como a própria personagem explica, não é alcunha, o pai chama-se Rodolfo Marques Grande e a mãe Ana Roda da Sorte. Sendo filho de pescador, Valdemar não tem praticamente hipóteses de subir na vida. Mas põe-se com ideias. Primeiro, porque lhe elogiam a inteligência na escola, aprende muito bem a ler e a escrever e descobre gosto pelos livros. Segundo, porque a sua mãe e, mais tarde, a sua irmã, trabalham no palacete Vila-Real, propriedade do barão local. Tanto o barão, como a esposa, gostam do seu jeito e da sua esperteza (e também a filha de ambos, que se torna na grande paixão do rapaz). O convívio naquela alta roda abre-lhe o apetite, Valdemar decide ser alguém na vida

Irá, porém, encontrar muitos obstáculos. O primeiro é livrar-se do seminário. Com o seu jeito para os estudos, tanto os pais, como os barões de Vila-Real, assim como o pároco local, são de opinião de que ele deve ser padre. Valdemar devia ter aprendido logo a lição: os ricos podem achar-lhe piada, mas não o admitem no seu meio, ao seu nível. Ser padre é o destino mais indicado para um filho de pescador com algum cérebro, um destino que consideram mais do que privilegiado. Ao recusar tal benesse, Valdemar compromete toda a sua vida. Ele possui, porém, força de vontade. A seguir a cada derrota, torna a levantar a cabeça e é isso que o torna simpático, aos olhos do leitor. À medida que o enredo avança, contudo, vai-se tornando cada vez mais oportunista, perdendo os escrúpulos. Mas não vou revelar mais pormenores.

O romance, no seu estilo irónico, um pouco cínico, prendeu-me do princípio ao fim. Penso que fazem falta livros destes em Portugal, livros que sabem entreter, sem menosprezar a qualidade. António Breda Carvalho constrói muito bem o evoluir do carácter da sua personagem. Valdemar embrenha-se na política, os tempos a partir de 1910 são propícios a quem procura a sua oportunidade. Mas é claro que a ideologia partidária passa para um plano secundário, bem atrás dos interesses pessoais dos seus protagonistas.

Além das peripécias de Valdemar, o leitor é presenteado com um bom retrato da Figueira da Foz daquela época e, no fundo, de todo o país. António Tavares, vereador do Pelouro da Cultura da Câmara da Figueira da Foz e finalista do último Prémio LeYa, escreve, no prefácio: «Mais do que um figueirense, Valdemar é um homem de um certo Portugal, num período que vai do fim da Regeneração à I República. Pobre e rude como o país, usa a sua esperteza de "comediante" para sobreviver aos maus momentos».

Publiquei dois excertos aqui.

Nota: Este romance teve Menção Honrosa do Prémio Literário João Gaspar Simões 2013. Publiquei igualmente uma opinião sobre o romance O Fotógrafo da Madeira, do mesmo autor, vencedor da edição de 2010 do mesmo Prémio Literário.


3 de setembro de 2014

Relevos

É já no próximo domingo, dia 7 de setembro, que é lançado Relevos, o livro de poesia de Virgínia do Carmo, que, além de poeta, é livreira em Macedo de Cavaleiros e minha editora. A apresentação da obra será feita por Hercília Agarez.



Estão agendadas mais duas apresentações:

- 13 de setembro, na Pó dos Livros, em Lisboa, pelas 16h00
- 19 de setembro, na Feira do Livro do Porto, pelas 21h00


2 de setembro de 2014

Nada como ler os clássicos (12)

E, desanuviado, sentindo as imagens e os dizeres surgirem como bolhas de uma água represa que rebenta, atacou esse lance do capítulo I em que o velho Tructesindo Ramires, na sala de armas de Santa Ireneia, conversava com seu filho Lourenço e seu primo D. Garcia Viegas, "o Sabedor", de aprestos de guerra... Guerra! Porquê? Acaso pelos cerros arraianos corriam, ligeiros entre o arvoredo, almogávares mouros? Não! Mas desgraçadamente, "naquela terra já remida e cristã, em breve se cruzariam, umas contra outras, nobres lanças portuguesas!..."
Louvado Deus! A pena desemperrara! E, atento às págimas marcadas num tomo da História de Herculano, esboçou com segurança a época da sua novela - que abria entre as discórdias de Afonso II e de seus irmãos por causa do testamento de el-rei seu pai, D. Sancho I.

In "A Ilustre Casa de Ramires", Eça de Queirós