Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

20 de junho de 2015

O Varandim seguido de Ocaso em Carvangel




Em dois contos, situados em dois grã-ducados imaginários, algures na passagem do século XIX para o XX, Mário de Carvalho apresenta-nos características e dramas humanos como a ambição, a hipocrisia, o medo do desconhecido, o deslumbramento por coisas banais, a indiferença por coisas menos banais ou mesmo perigosas, o acreditar em coisas fáceis porque é mais fácil, a esperança, a desilusão, a desumanidade.

Tudo nos é apresentado numa escrita fresca, de tão criativa, com pormenores geniais, temperada com uma fina ironia, a presença constante nestas duas narrativas (quase podemos dizer que a ironia é a verdadeira personagem principal), embora, quase sempre, os acontecimentos narrados sejam trágicos. O difícil balanço entre tragédia e comédia é, porém, perfeitamente conseguido.

Gostei mais do conto O Varandim, em que há um avô constantemente transportado na sua cama escada acima, escada abaixo, por motivos que só no final se vislumbram. Aproveito uma dessas cenas (p. 54) para dar uma amostra da escrita extraordinária de Mário de Carvalho:

Mas, em casa, estava instalado o pandemónio. Abrir a porta foi como destapar uma daquelas caixas míticas de onde irrompem, explodindo, males e prodígios. À entrada, Kosm ladrou, rebolou-se, correu, voltou, agachou-se, saltou, as orelhas num virote, a cauda num torvelinho. Pela escada ribombavam ecos de pancadas incertas na madeira dos painéis, no corrimão, nos degraus. A meio da escada, meio descomposto, em colete, as mangas da camisa enfunadas, Cleonardo em feroz gesticulação dirigia uma manobra, dando ares de um jovem pirata comandando uma abordagem cruel.

Ondulando e derivando, de degrau em degrau, mal amparada por Bekushka e Bucheon e orientada por uma Arnolda excitada, descia a cama do avô, atravessado e convulso entre amontoados de roupa, emitindo, na sua obliquidade, uns gemidos prolongados, sonoros a cada arranque, lentos no esvair das expirações.

- Papá, papá. É preciso desocupar o sótão!

E Zoltan viu nos olhos acesos do filho, nos gestos largos e bruscos, na aura de vibrações que lhe electrizava os cabelos e a própria roupa, um assomo de energia de que nunca pensou que ele fosse capaz. Sentou-se no canapé, lasso, sem forças.

- Água, água para o papá, imediatamente.

E, quando Bekushka largou a cama, os ferros tiveram mais um baque e o velho soltou mais um gemido.

Neste excerto, apercebemo-nos dos nomes curiosos que Mário de Carvalho dá às personagens desses locais imaginários. Para quem sabe alemão, alguns tornam-se particularmente hilariantes e não resisto a dar alguns exemplos:

- um homem chamado Zauerkraut (com Z em vez de S, que, como todos sabem, é a chucrute)
- a marquesa de Zufriedenheit (ou seja, do contentamento)
- a família Unmöglich (impossível)
- o barão Kindlich (jogando com a palavra "kindig", que significa infantil ou acriançado)
- a ilha de Katzenjammer (a ilha do lamento do gato)
- o conde de Überalles (sobretudo, pois claro)
- a senhora Dummschen (mais um jogo, com a palavra "dümmchen", que significa tolita ou parvita)
- os jesuítas Schlachten (batalha, carnificina) e Scröpfen (enfim, "Kropf" é bócio).


(Sem ousar comparar-me a tão talentoso escritor, apenas para publicidade, até me apetece recordar os nomes do meu Cloning Adolf: Kornflock, Matrix Relot, Obskur, Chanel Luninski, Tortinova e Cia.).


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