Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.
25 de abril de 2016
Faces da Revolução
Enfim, não havia como recuar. Restava-lhe tentar compor as coisas de maneira a que o resto da família não sofresse as consequências do comportamento da filha. O facto de outros filhos de boas famílias se deixarem igualmente envolver em ações subversivas dava-lhe um certo conforto, sentia-se menos sozinho, mais compreendido. Talvez devesse dirigir-se aos seus antigos contactos da PIDE, explicar-lhes que era vítima de uma filha desmiolada e que fazia questão de que ela fosse tratada com toda a dureza. Talvez até se oferecesse para ir a Caxias dar-lhe umas bordoadas.
Começaria por se desculpar perante o Professor Marcelo Caetano, não deixando margem para dúvidas de que lhe saíra na rifa uma «filha má», apesar do empenho que ele pusera na sua educação. Dedicou vários dias à escrita da carta, relendo e corrigindo, até ela lhe parecer perfeita. Depois, num serão de quarta-feira, aproveitou o facto de a mulher e o filho estarem a ver televisão, para se posicionar no meio da sala e ler-lhes a missiva, deixando claro ao miúdo, ainda a acabar o liceu, a vergonha que a irmã fazia toda a família passar.
Apesar de o rapaz se mostrar enfastiado por aquela interrupção de um jogo de futebol, nada disse. Jogava-se a segunda mão da meia-final da Taça das Taças, com participação portuguesa: o Sporting Clube de Portugal enfrentava o Magdeburgo, da República Democrática Alemã. O rapaz nem sequer perguntou ao pai se não se interessava pelo jogo. Por um lado, receava-o; por outro, mantinha-se a leste do assunto, não mostrando a mínima emoção pelo destino da irmã.
Ao jantar, apercebendo-se de que o Sporting falhara a final, ao não conseguir marcar um segundo golo, o pai iniciou uma divagação sobre o desempenho das equipas portuguesas em taças europeias. A esposa e o filho comeram no mais completo dos silêncios.
Em seguida, viu um pouco de televisão, tornou ao escritório e datou finalmente a carta: «24 de Abril de 1974». Enfiou-a, cheio de brio, num envelope, que endereçou ao Presidente do Conselho de Ministros. No dia seguinte, metê-la-ia no correio.
Olhou para o relógio. Eram quase onze horas. Ligou o rádio para ouvir as notícias. Passava, mais uma vez, a canção interpretada por Paulo de Carvalho, que representara Portugal no Festival da Eurovisão, havia quase duas semanas. Não ligava a cantorias, mal sabia distinguir as canções umas das outras. Mas, por acaso, conhecia alguns versos de E Depois do Adeus, tantas vezes a ouvia…
Tu vieste em flor
Eu te desfolhei
Tu te deste em amor
Eu nada te dei.
© Cristina Torrão
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