Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

31 de agosto de 2017

A Polémica dos Blocos

Ricardo Araújo Pereira quis ridicularizar a polémica à volta dos blocos de atividades para crianças, da Porto Editora, mas, afinal, ainda apontou mais defeitos aos famigerados livrinhos. Diz ele que a questão dos labirintos aconteceu por terem sido duas ilustradoras diferentes a criá-los. E eu pergunto: porque é que os revisores da editora não corrigiram?

Por outro lado, deu a conhecer mais absurdos. As meninas parece que são mais cultas. Leem e vão ao museu, enquanto os rapazes só pensam em brincar. Engraçado, como o conhecido humorista (que eu aliás aprecio) usa isto como justificação para dizer que os blocos, afinal, não são tão maus. Afinal, os meninos também aparecem em desvantagem!

Simplesmente ridículo!

Eu gostava de saber porque se publicam livros separados, se, na escola, aprendem todos com os mesmos. Porque não incluir tudo no mesmo livro? Dava mais liberdade criativa. O menino e a menina podiam ser protagonistas em exercícios diferentes e, nalguns, principalmente nos que dizem respeito à leitura e às idas ao museu, deviam atuar os dois juntos, em equipa. Seria muito mais pedagógico.

Há muita gente que acha tratar-se de um tema sem importância, posição da qual discordo totalmente. Livros são sempre um tema sério, sejam infantis, ou não. Acresce dizer que a Porto Editora compreendeu perfeitamente a recomendação da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, não se queixou de ter sido vítima de censura e está disposta a rever os conteúdos. Para mim, isto é a aceitação do erro (o que pressupõe a sua existência) e vontade de o corrigir.




Da Porto Editora saíram dois bloquinhos,
Um p’ró menino, outro p’rá menina.
Engane-se quem julgue que eram miminhos,
Choveu indignação abaixo e acima.

Labirintos simples para princesas,
Mas só porque as ilustradoras eram diferentes.
E os revisores, senhores, estão ceguetas?
Precisarão de novas lentes?

Retire-se do mercado, da loja, do caneco!
Ressurge a Velha Senhora de lápis na mão.
É a censura do politicamente correto.
Pois, minha gente, o Trump é que tem razão!

Meninas dedicam-se à leitura e vão ao museu,
Meninos só querem brincar com carrinhos.
«De que se queixam?», faz o humorista escarcéu,
Afinal, a todos se desanca nos lombinhos.

E assim vai a educação em Portugal,
Quando comem todos, é uma alegria.
Os estereótipos aí estão, de pedra e cal,
O negócio à frente da pedagogia.

Meninos e meninas juntos a apreciar pintura?
Um bloco para todos, como é na escola?
Onde já se viu, aqui não há mistura!
Diz o lusitano, esse grande estarola.

Erguem-se vozes num medo desalmado,
Que mundo é este, tão descaracterizado,
Sem meninas dóceis, a mexer os tachos?
E nem um piropo, nem um “apalpanço”,
Para alegrar os malandrões do rapinanço?
Construam-se muros, teçam-se farpados!
Guardemos o nosso jardim à beira-mar plantado!




29 de agosto de 2017

26 de agosto de 2017

O Verão de 2012




«Durante o Verão de 2012, um psiquiatra e o seu paciente conversam e trocam correspondência acerca do confronto entre a vida e a morte».

É este o mote desta obra (citado da sinopse da editora), que, penso, terá aspetos biográficos, já que, tal como P., a personagem principal, que aliás só conhecemos através do narrador, o seu psiquiatra, também o escritor Paulo Varela Gomes sofria de doença incurável (viria a morrer em 2016).

Paulo Varela Gomes não só divaga sobre a vida e a morte, mas também sobre a situação do país, nesse ano em que se iniciou a austeridade, com algumas incursões ao tempo da Revolução de Abril, que o desiludiu, e igualmente sobre autores setecentistas que escreveram sobre Portugal, com destaque para os diários de William Beckford.

É sempre enriquecedor ver o nosso país sob o ponto de vista de um estrangeiro, que, claro, nunca é objetivo, principalmente um inglês setecentista com complexo de superioridade. Aguça, porém, o espírito crítico. Como exemplo das reflexões de P., escolhi, no entanto, outros temas, os meus preferidos, que têm a ver com a condição humana e a sua relação com os bichos e as plantas. Recordo que o narrador é o psiquiatra, o que implica um distanciamento do autor em relação à sua própria opinião, um exercício que achei interessante, pois demonstra a sua consciência de não ser o dono da verdade, sem deixar, no entanto, de exprimir o que lhe vai no pensamento:

“nessa época em que se iniciava a fase mais mortífera do massacre das baleias pelos pescadores europeus e norte-americanos em todos os oceanos da terra, cujos únicos resultados assinaláveis foram a quase extinção das baleias e a obra-prima de Herman Melville, Moby Dick, um livro publicado em 1851 que, escreveu P., retomando uma das suas boutades favoritas, deixou completamente indiferente a grande maioria dos seres vivos, em particular, as baleias, os outros bichos e as plantas, sempre alheios às chamadas obras de arte com que os humanos acham sinceramente distinguir-se dos outros habitantes do planeta” (p. 14).

“Mas, escreveu ele, este facto, o facto de os humanos só terem progredido naquilo que é a manutenção e o prolongamento da sua vida, só terem obedecido a um, e um único, dos mandamentos divinos ou dos comandos de programação com que foram lançados na Terra, a injunção «Crescei e multiplicai-vos!», esse facto mostra que os humanos cuidam de si com uma indiferença perante o meio onde vivem que os torna semelhantes aos vírus, organismos que, para se poderem multiplicar à vontade, liquidam o corpo do qual se alimentam” (p. 36).

Sobre os portugueses, refere um aspeto que eu aliás abordei no livro Tu És a Única Pessoa:

“a esmagadora maioria dos portugueses não se deu mal com o salazarismo; eram como toda a gente, cujo lema de vida, em todas as épocas e em toda a parte, foi aquele que os cobardes espalharam em Portugal: «A minha política é o trabalho», quer dizer, é o silêncio, a aquiescência envergonhada, o medo da própria sombra” (ps. 80/81).

Um livro a ler, portanto.


24 de agosto de 2017

Lendo e Refletindo


“Não se esqueça, disse-me uma vez, de que o amor pelos animais não acontece naturalmente aos humanos se não se predispuserem a prestar-lhes atenção e a aceitar o amor que eles têm por nós. É como o amor de Deus, inteiro e desinteressado, e por essa razão, tanto mais difícil de perceber e abraçar, um amor sem negócio, sem contrapartida, sem condições.
Também ele não soubera o que eram os animais até muito tarde e, tal como sucede a todos os que os descobrem, tratara-se de uma verdadeira conversão, como aquela que se exprime na parábola de S. Paulo na estrada de Damasco: de súbito acende-se dentro de nós uma claridade que nunca mais é possível apagar. Há muita gente que não gosta de animais nem de pessoas, o que é compreensível; há gente que gosta de animais mas não de pessoas, o que é lógico; mas não há ninguém que não goste de animais e goste de pessoas, esta última hipótese não pode verificar-se, porque quem não consegue experimentar o amor sem causa não pode encontrar em parte alguma causa bastante para o amor”.

In O Verão de 2012, Paulo Varela Gomes, p. 52 (Tinta-da-china, 2013)