«No século XVIII, Maria
Antonieta supostamente aconselhou as massas famintas a que, se ficassem sem
pão, comessem bolos. Hoje, os pobres seguem este conselho à letra. Enquanto os
habitantes ricos de Beverly Hills comem salada de alface e tofu cozido a vapor
com quinoa, nos bairros da lata e guetos os pobres engolem bolos industriais,
pacotes de aperitivos salgados, hambúrgueres e pizzas (…) Já não existe fome natural no mundo, há apenas fome de
origem política (…) na maioria dos países, hoje, comer demais tornou-se um
problema muito pior do que a fome (…) Em 2010, a fome e a desnutrição
combinadas mataram cerca de um milhão de pessoas, enquanto a obesidade matou
três milhões».
São palavras do historiador
israelita Yuval Noah Harari, autor do livro Homo
Deus - História Breve do Amanhã (Elsinore 2017) numa entrevista
ao DN. Na sinopse da Editora Elsinore, Homo
Deus é um «ensaio que explora os projetos, sonhos e pesadelos que vão dar
forma ao século XXI, da erradicação da fome ao fim da guerra, passando pela
vida artificial».
A julgar pela entrevista, o
livro vale a pena. Além de analisar o presente, e baseado na História da
espécie humana, Yuval Noah Harari faz um retrato bem fundamentado de um futuro
próximo, em que seremos condicionados pelo algoritmo e em que «existe o perigo
de a humanidade se dividir em castas biológicas».
Na entrevista, Yuval Noah
Harari foca o problema de, pela primeira vez na História, não sabermos o que
ensinar aos jovens, já que tudo acontece muito depressa. Daqui a vinte ou
trinta anos, os nossos filhos não poderão usar aquilo que lhes ensinamos hoje.
«O nosso conhecimento está a aumentar a uma velocidade vertiginosa e,
teoricamente, deveríamos entender o mundo cada vez melhor. Mas está a acontecer
precisamente o contrário». De facto, antigamente, tudo era mais previsível: «Em
1017, os pais ensinaram aos seus filhos como plantar trigo, como tecer lã, ou
como ler a Bíblia e era óbvio que essas capacidades ainda seriam necessárias em
1050. Pelo contrário, a maior parte do que as crianças aprendem hoje na escola
será irrelevante em 2050».
Este pensamento é realmente
interessante. Mas, e apesar de não contrariar a sua lógica, há uma informação
falsa nestas afirmações, um erro, que um historiador não devia dar: «Em 1017,
os pais ensinaram aos seus filhos (…) como ler a Bíblia».
Recuemos a 1017!
Há
mil anos, não era possível ir a uma livraria comprar a Bíblia traduzida na
nossa língua. Não havia livrarias. Só existiam livros nos mosteiros,
escritos e/ou copiados à mão pelos monges, pois faltavam mais de quatro séculos
para a imprensa ser inventada.
Em
1017, 99% das pessoas não sabia ler, nem sequer o que era um livro. As Bíblias
que se guardavam nos mosteiros estavam escritas em hebraico, grego ou latim e,
além dos clérigos instruídos (porque os havia ignorantes), ninguém sabia ler
nelas, nem sequer os membros das casas reais. Na Idade Média, havia uma ordem
considerada divina: a nobreza, que se dedicava à guerra; o clero, que se dedicava
à religião e à cultura (as duas coisas andavam ligadas); o povo, que se
dedicava ao trabalho agrícola. Ou seja: mesmo a nobreza deixava a leitura da
Bíblia a cargo do clero e orientava-se pelas pregações deste. Os camponeses,
que ensinavam os seus filhos a plantar trigo, viviam aterrorizados com o pecado
e o inferno e conheceriam apenas algumas histórias da Bíblia, as que lhes eram
contadas pelos padres.
Tanto quanto sei, a leitura da
Bíblia em família só surgiu na época moderna, ou seja, a partir do século
XVIII, e mais entre os Protestantes, resultado da Reforma Luterana que, aliás,
coincidiu, no tempo, com a invenção da imprensa. As ideias de Lutero nunca
teriam atingido tanta popularidade, se não fossem difundidas pela invenção de
Gutenberg. A Bíblia de Lutero, traduzida em alemão (e a que se seguiriam outras
traduções), deu início a uma verdadeira revolução, pois, pela primeira vez,
qualquer pessoa (que soubesse ler e, no século XVI, já eram mais do que no XI) podia
ter acesso às Escrituras Sagradas e interpretá-las à sua maneira.
Dizer que os pais ensinavam os
filhos a ler na Bíblia, no século XI, é, por isso, uma expressão muito infeliz
deste notável historiador.
Bem observado, Cristina.
ResponderEliminarTalvez a intenção do Yuval não tivesse tanto relação com a bíblia livro mas com a necessidade de aprender a rezar segundo os conceitos bíblicos. Mas fica registado o deslize do autor e a perspicácia de quem manifestamente "percebe da poda". ;)
Também pensei nisso, caro amigo. Sim, os pais ensinavam os filhos a rezar. E deviam conhecer algumas histórias da Bíblia, que lhes contavam, pelo menos, no Natal e na Páscoa. Mas Yuval Harari não devia ter dito "ler na Bíblia" porque induz em erro pessoas que não tenham conhecimentos históricos.
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