Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

30 de março de 2019

A Tentação de D. Fernando



Este é um interessante romance sobre o reinado de D. Fernando, um rei que, apesar de ter ficado conhecido pela importante Lei das Sesmarias, teve um reinado bastante caótico, talvez se possa mesmo dizer improdutivo. Conduziu Portugal a guerras desnecessárias, fez um casamento problemático e, à sua morte, o reino caiu numa grave crise de sucessão, só resolvida com a vitória do Mestre de Avis na Batalha de Aljubarrota.

A caracterização que Jorge Sousa Correia faz de D. Fernando é acompanhada de grande ironia, o que até se justifica e cria momentos de facto hilariantes. No entanto, é uma caracterização muito distante, ou seja, o romancista vê a sua personagem de longe e limita-se a comentar, sem tentar explicar as suas motivações. É uma opção. Porém, agrada-me mais uma maior aproximação à personagem, dando a conhecer os seus motivos, conflitos e sentimentos.

Jorge Sousa Correia é licenciado em História e foi professor dessa disciplina. Tem naturalmente um bom conhecimento da época. Por outro lado, usa e abusa de anacronismos. Por exemplo: um patrão de uma taberna dizer a uma das prostitutas que lá trabalham que não pode estar «mais do que cinco minutos com um cliente», num tempo em que ninguém usava relógio, pois todos se guiavam pelo sol, é inconcebível. As pessoas daquele tempo nem sequer sabiam o que eram minutos e segundos.

Também não apreciei a forma de caracterizar os ingleses que se instalaram em Portugal, a fim de ajudarem D. Fernando na sua guerra contra Castela. Provocaram muitos desacatos em Lisboa, mas mais por incompetência do rei em impor a ordem, do que por qualquer outro motivo. Ora, Jorge Sousa Correia descreve-os como modernos hooligans: homens violentos, que só sabem beber e andar à pancada e, não tendo portugueses em quem bater, «vá de andar ao murro uns com os outros». Enfim… Além disso, apelida-os, muitas vezes, de bretões, tendo eu sérias dúvidas se estará correta esta designação.

Uma última palavra para a taberna de Mariamem e do Falcão, local lisboeta de diversão noturna, onde se vão comentando as novidades. Em si, é uma boa ideia apresentar muito do que aconteceu no reinado de D. Fernando sob uma perspetiva popular. Por outro lado, o autor trata, na minha opinião, a vida das prostitutas que lá trabalham com leveza exagerada. Na Idade Média, as prostitutas encontravam-se no patamar mais baixo da sociedade, a sua vida era marcada por violência, desprezo total e graves problemas de saúde. Ora, as “meninas de Mariamem” são criaturas muito bem-dispostas, que aceitam todas essas vicissitudes de ânimo leve. A taberna de Mariamem é um paraíso para homens. E a leitura deste romance também se adequa mais ao setor masculino, diria eu.


5 comentários:

Juvenal Nunes disse...

Se me permite uma achega, direi que, a designação dos ingleses por bretões não é incorreta, porque era esse o nome porque eram conhecidos os habitantes naturais da Grã-Bretanha.

Juvenal Nunes

Juvenal Nunes disse...


Acerca dos relógios talvez o autor não tenha cometido um erro tão indesculpável quanto isso. O rei D. Fernando nasceu em 1345 e sabe-se que, em 1314,a França deu a conhecer o primeiro relógio público.O conhecimento deste facto pode justificar a forma como o autor desenvolveu a trama face à questão do tempo.

Juvenal Nunes

Cristina Torrão disse...

Caro Juvenal, só agora li os seus comentários, pois, por razões que me escapam, deixei de receber emails quando alguém comenta. Como tenho, porém, tido muitos comentários "spam", vou acionar a moderação e, aí, já devo receber os emails (espero).

Quanto aos seus comentários, muito obrigada.

Fiquei em dúvida com a palavra "bretões", porque há a Bretanha francesa e perguntei-me se apenas os seus habitantes seriam os bretões.

Quanto ao relógio, sim, eu tinha essa impressão de que foi precisamente no século XIV que surgiram os relógios. Mas coisas dessas, naquele tempo, demoravam a ser assimiladas pelo povo em geral, pelo que não sei se o pessoal de uma taberna já estaria familiarizada com minutos e segundos. Além disso, seria interessante saber quando surgiu o primeiro relógio público em Portugal. E, nessa altura, estariam todas as pessoas em condições de ler as horas?

Juvenal Nunes disse...

O primeiro relógio público em Portugal surgiu, precisamente, no reinado de D. Fernando. Este rei tomou a iniciativa, em 1377, de colocar, na Sé de Lisboa, o sino do relógio, que mandou fazer a um mestre chamado João Francês.
Espero que esta informação possa ser útil para o assunto em questão.

Juvenal Nunes

Cristina Torrão disse...

Caro Juvenal, muito obrigada pela sua informação que, sem sombra de dúvida, é interessante e útil. Não sabia e já registei.

Mantenho, no entanto, a dúvida de que todas as pessoas estariam em condições de ler as horas e continuo a considerar a expressão «mais do que cinco minutos com um cliente» fora de contexto. Se o relógio da Sé dava as horas (com badaladas) as pessoas foram aprendendo a dizer: "é meio-dia", "são 3 horas", são 5 horas", etc. Mas daí a saber o que eram minutos e segundos...

(Agora que ativei a moderação de comentários, já recebo os emails. A desvantagem é que os comentários ficam cativos, até eu os aprovar).