Surdo a tais apelos, o KiZ insiste no assunto. E eu aplaudo. Porque é disso mesmo que os prevaricadores estão à espera: que, depois de se fazer uma balbúrdia à volta do assunto, o caso adormeça e eles possam voltar a maltratar as suas vítimas na paz do Senhor. Como sempre foi, durante séculos e séculos. Uma teia impenetrável de prevaricadores e coniventes, que abafam os crimes, que nunca castigam os criminosos, levando a Igreja de Cristo a esta situação incomportável: protecção dos criminosos, em vez de protecção das vítimas! Dizia, há tempos, uma colaboradora desse jornal: é inadmissível que um padre que o deixe de ser, a fim de se casar, seja tratado de forma mais dura pela sua Igreja, do que aqueles que abusam sexualmente de crianças!
Tenho lido relatos incríveis de antigas vítimas.
Também há mulheres, mas a maioria parece ser homens. Em todo o caso, trata-se
de pessoas que, só aparentemente, levam uma vida normal, pois não se livram de
depressões, insónias, ataques de pânico e tentativas de suicídio durante toda a
sua vida. Pessoas com asco de si próprias. Pessoas que tornam a recordar coisas
que julgavam esquecidas, por exemplo, quando têm filhos, levando-as a cair
novamente num poço escuro e frio, chegando a ficar com medo de tocar nas
crianças (as suas crianças) de forma imprópria.
É duro ouvir um homem de sessenta anos dizer que se
martirizou com pensamentos de pecado, ao lembrar-se de como regozijou ao saber
que o padre, que abusara dele durante dois anos, ia ser transferido para outra
paróquia. Na festa de despedida, toda a gente estava triste, por aquele padre
tão simpático se ir embora. E ele, um miúdo de 11 ou 12 anos, estava feliz. E censurou-se
por isso! É duro ler como bispos regiam autênticas redes de troca de menores. É
duro ler como um padre, ganhando a confiança de uma família, a ponto de fazerem
férias juntos, abusasse do miúdo, que dormia com ele, enquanto os pais dormiam
no quarto ao lado, pensando que o filho não poderia estar entregue em melhores
mãos.
Este último caso ilustra como a Igreja tem
responsabilidades acrescidas. O Papa Francisco desiludiu no seu discurso de
encerramento do encontro extraordinário de bispos em Roma, a fim de debater o
assunto, há cerca de dois meses, ao relembrar que abusos sexuais a menores
acontecem em todos os lugares onde adultos estão em contacto com crianças e
jovens, como clubes desportivos, colónias de férias, lares, etc. Esta
relativização caiu mal a muita gente, pois não se pode comparar o prestígio de
um clérigo, representante de Deus na Terra, com o de um treinador de ginástica.
Além disso, aconteça onde acontecer este crime, não pode ser nunca menorizado
ou relativizado. Muitos se perguntam o que levou um Papa, normalmente tão
acutilante e corajoso, ficar-se por discurso tão modesto. Por isso, escolhi a
fotografia acima para ilustrar este post
(igualmente copiada do KiZ): o Papa
mostra-se abatido e encolhido, como se o peso que carrega nos ombros se tenha
tornado demais para ele.
Numa altura de falta de padres e de igrejas quase
vazias, escândalos deste tipo minam a confiança na instituição milenar. Não há
dúvida de que a Igreja vive uma grande crise e só resolverá o problema com uma
grande reforma. Alguns bispos alemães dão os primeiros passos, apesar de
sofrerem a contestação de muitos dos seus pares. O novo bispo de Hildesheim,
por exemplo, afirmou, numa entrevista, que a ganância do poder está inscrita no
DNA da Igreja. Foi naturalmente muito contestado. Mas também apoiado. Porque
ele pôs o dedo na ferida. Os abusos impunes de menores só se tornaram
possíveis, porque a Igreja se transformou num clube de homens que se protegem
uns aos outros, a fim de manterem o seu poder.
O bispo Heiner
Wilmer não se deixa intimidar e constituiu uma comissão que
deverá investigar os casos de abuso sexual no seu bispado entre os anos 1957 e
1982, o tempo de regência de um bispo muito querido e conceituado, mas que se
desconfia que fazia parte de uma rede de troca de rapazinhos, algo que caiu
como uma bomba entre os católicos alemães que se lembram dele, até agora, com
muita saudade. Os elementos da comissão investigadora não são clérigos, nem estão
particularmente relacionados com a Igreja, a fim de garantir a sua
independência. E o bispo Heiner Wilmer prometeu pôr todos os arquivos à
disposição dos investigadores. Este é um dos problemas, quando se trata de
investigar: a retenção de informação por parte da Igreja.
Quatro pessoas fazem parte da comissão: dois
psicólogos, que se encarregarão de entrevistar possíveis vítimas e outras
testemunhas; um procurador-geral reformado que, durante quinze anos, presidiu a
uma comissão que investigou crimes nazis em Ludwisburg, e a antiga Ministra da
Justiça da Baixa Saxónia (um Land
alemão) que presidirá à comissão (informações tiradas do Kiz nº 14, de 07 de Abril passado).
O facto de estar uma mulher à frente desta comissão
não é por acaso. O bispo Heiner Wilmer é de opinião de que a Igreja Católica só
tem a ganhar envolvendo mulheres nos seus assuntos. Mais: ele considera ser
essencial a participação de mulheres na reforma que se exige, não excluindo a
sua ordenação.
Foi com agrado que, apesar das críticas que lhe são
feitas, constatei haver colegas seus a seguir-lhe o exemplo. No último KiZ (nº 15, de 14 de Abril), li que o
bispo de Osnabrück, Franz-Joseph Bode, considera a discussão do papel da mulher
na Igreja como urgente, central e inevitável. Na sua opinião, a Igreja Católica
está a desmoronar e só pode recuperar a confiança, quando mulheres e homens
trabalharem em conjunto. Li igualmente com muito agrado que o bispo de Limburg,
Georg Bätzing, pretende igualmente constituir uma comissão, a fim de investigar
os abusos sexuais no seu bispado nos últimos setenta anos. A comissão será
constituída por duas pessoas não ligadas à Igreja e terão de ser um homem e uma
mulher.
Não se trata, aqui, de quotas ou de calar críticas.
Trata-se, acima de tudo, de enquadrar mulheres nos meandros da Igreja,
quebrando o monopólio dos homens que se apoiam e protegem mutuamente. Desejo
muito que isso aconteça. Não porque as mulheres sejam, em geral, melhores do
que os homens, mas porque a sua presença quebrará a irmandade masculina. Além
disso, a sua opinião deve ser ouvida. Os homens são apenas metade da
Humanidade. Nos dias de hoje, não há razão para que sejam apenas eles a
decidirem sobre assuntos que digam respeito a toda a Humanidade. Na verdade, impressiona-me
que tal procedimento tenha funcionado durante milénios!
Sigo tudo isto com grande interesse, não para atacar a
Igreja Católica, mas numa grande esperança de que ela se consiga renovar. A
Igreja enfrenta um dos maiores desafios da sua História e urge redefinir o seu
papel. Para que serve, hoje em dia? Apenas para baptizados, comunhões,
casamentos e funerais? Não podemos esquecer as suas tão necessárias missões
caritativas espalhadas pelo mundo. E a Igreja Católica alemã tem-se concentrado
noutras causas: o apoio aos refugiados (nos últimos anos, entraram cerca de
dois milhões, neste país) e a ecologia. Sim, a preservação do ambiente, aliada
à causa animal, tem-se tornado, cada vez mais, uma causa da Igreja. A razão?
Proteger a Criação Divina.
Seria bom que a Igreja portuguesa lhe seguisse o
exemplo, fomentando o debate sobre temas polémicos e se deixasse de dogmas
ultrapassados, a fim de se dedicar a causas realmente importantes.
Nota: texto publicado originalmente aqui.
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