Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

30 de abril de 2015

O Meu Irmão






Afonso Reis Cabral possui um notável sentido de observação e descreve com incrível nitidez o Portugal interior, a sua miséria e a sua ignorância. Mas a juventude também se nota na sua escrita, o que, na minha opinião, está longe de ser uma desvantagem. Há uma sinceridade e uma singeleza que uma pessoa vinte anos mais velha não conseguiria (e o próprio escreverá de maneira diferente, quando atingir essa idade). No início, até achei desnecessário que a sua personagem principal (o narrador, já que o livro é escrito na primeira pessoa) tivesse à volta de quarenta anos, mas talvez essa minha irritação tivesse a ver com a polémica gerada pelas declarações de António Lobo Antunes. Tivesse eu pegado no romance, sem saber a idade do autor, quiçá ficasse a pensar que ele fosse realmente vinte anos mais velho… E, à medida que se avança na leitura, vê-se que, por motivos de enredo, a pessoa tem mesmo de ser daquela idade.

A convivência com um irmão com o síndrome de Down é-nos transmitida de forma pragmática, sem sentimentalismos, aliás, uma das razões que justificou a atribuição do prémio. O autor aproveita inclusive essa relação para denunciar duas situações. Em primeiro lugar, num paralelismo que achei muito interessante, mostra-nos que os problemas que tal convivência gere estão longe de serem exclusivos de uma família que alberga um membro com deficiência. Em qualquer outra, de pessoas “normais”, se geram dependências e subjugação, se encontra alguém que vive em função de outrem, numa espécie de servidão, que pode durar quase uma vida. Em segundo lugar, foi muito interessante testemunhar os ciúmes que o filho “normal” sentia do filho com deficiência. Claro que tendo um filho com necessidades especiais, os pais se centram à volta dele, com tendência a esquecer-se dos restantes. E é difícil explicar a uma criança pequena que o irmão, apenas um ano mais novo, necessita de mais carinho e cuidados do que ela. Não se pode mesmo explicar, a criança não o percebe. Achei comovente a confissão do narrador de, em pequeno, ter desejado ser o irmão, ter desejado possuir uma deficiência, a fim de ser mais acarinhado e amparado pelos pais. Impressionava-o, acima de tudo, o facto de o irmão poder fazer as maiores travessuras, poder ser mal-agradecido e mostrar frieza de sentimentos, sem ser admoestado, nem que ninguém ficasse ofendido com ele.

Trata-se, por isso, de um livro muito interessante e bem escrito. Porém, e sem querer revelar muitos pormenores, fiquei surpreendida com o grau de violência de que o narrador revelou ser capaz. As maiores desumanidades acontecem na própria família. E as maiores rivalidades, invejas, os maiores ciúmes, criam-se entre irmãos, independentemente de deficiências ou outro tipo de problemas. Pois é…



2 comentários:

Olinda Melo disse...


Já tinha lido alguma coisa sobre esse livro e esse autor. Obrigada por esta análise que termina com palavras que realmente se aplicam a muitos ambientes familiares. Existe, por vezes, muita violência no seio das famílias.Quase todos os dias vemos e ouvimos exemplos desses, que nos causam horror.

Bj

Olinda

Cristina Torrão disse...

Verdade, Olinda, é assustador o que por vezes se verifica no seio familiar...