Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

11 de outubro de 2012

O Tratado que não houve (ou que houve, mas não com o conteúdo que lhe costumamos atribuir)

Assinalei, a 5 de Outubro, mais um aniversário sobre o Tratado de Zamora. Nesse dia, porém, João José Cardoso, através de uma nota na barra lateral do Aventar, chamava a atenção para um texto seu, que defendia que o Tratado de Zamora muito simplesmente não existe e nem é provável que tenha existido.

Bem, eu estava consciente de que não será correto atribuir a esse tratado a fundação da nação portuguesa independente, como, aliás, aqui e aqui referi. Mas a hipótese de ele nem sequer ter existido fez-me pegar, novamente, na biografia de D. Afonso Henriques, da autoria de José Mattoso (Temas e Debates 2007). E, já agora, chamo a atenção para duas coisas:

Primeiro, eu não escrevo livros históricos e, sim, ficção baseada na História, pelo que, nos meus livros, há muita imaginação e subjetividade. Quem lê um romance, porém, deve ter em conta que se trata disso mesmo.

Segundo: li a citada biografia há quatro anos, tirei as minhas notas e nunca mais lhe havia pegado, pelo que não estava já bem certa do que o Prof. Mattoso dizia acerca deste assunto.

Resolvi, assim, citar as passagens que me parecem mais relevantes, lembrando que o Prof. Mattoso não é dono da verdade (algo que ele, aliás, admite; atentemos à primeira frase deste livro: Não é preciso ser historiador profissional para perceber que não se pode traçar a biografia de uma personagem medieval sem uma grande dose de imaginação). Mas ele é, sem dúvida, um dos melhores historiadores portugueses de todos os tempos. Acima de tudo, é honesto e empenhado em esclarecer as mentiras e efabulações criadas durante o Estado Novo, que, infelizmente, ainda pairam no nosso imaginário coletivo.


Extratos tirados das páginas 207 a 214: 

No Verão de 1143, chegou ao reino de Leão o cardeal legado da Sé Apostólica Guido de Vico (…) O legado vinha, pois, à Hispânia procurar o apoio político e económico de que o papa necessitava. (…) Guido parece ter-se dirigido primeiro a Portugal. Há informações acerca da sua estadia no Porto e em Coimbra.
(…)
De Coimbra, o legado dirigiu-se a Valhadolid, onde, em 19 e 20 de Setembro, celebrou um concílio.
(…)
Depois de ter encerrado o concílio, o legado papal dirigiu-se a Zamora, onde estava a 4 e 5 de Outubro, e onde se reuniu com os reis de Portugal e de Leão. A este encontro chamam os historiadores modernos a «conferência de Zamora». Tem sido considerada como a reunião que selou o acordo entre Afonso Henriques e Afonso VII, que marcou o reconhecimento pelo segundo da dignidade régia do primeiro, e que permitiu a celebração de um tratado, que talvez incluísse uma repartição dos direitos de conquista sobre territórios muçulmanos, mas do qual, infelizmente, não existe nenhum texto.
(…)
A 13 de Dezembro de 1143, Afonso Henriques dirigiu uma carta ao papa [Claves regni celorum] declarando que tinha feito homenagem à Sé Apostólica, nas mãos do cardeal Guido, como cavaleiro de São Pedro (miles Sancti Petri) (…) Também se torna quase certo que esta decisão obtivera o acordo do cardeal, uma vez que a carta declara que o rei tinha prestado homenagem nas suas mãos. (…) Estes factos significam, por sua vez, a realização de conversações anteriores, talvez por ocasião da passagem de Guido por Coimbra [ou seja, antes da conferência de Zamora].
(…)
Se Afonso VII teve então conhecimento da homenagem que Afonso Henriques diz ter prestado nas mãos do legado (…) causa alguma surpresa verificar a pouca resistência que Afonso VII parece ter oferecido a este acto que punha em causa a sua autoridade de suserano de toda a Hispânia (…) e que contrariava o pacto de Tui de 1137.

Conclusões:
1 - Será mais correto falar da «Conferência de Zamora» do que do «Tratado de Zamora».
2 - A ter havido um tratado, debruçou-se, essencialmente, sobre a repartição dos direitos de conquista sobre territórios muçulmanos.
3 – Não se nega, porém, que o encontro terá marcado o reconhecimento pelo segundo [Afonso VII] da dignidade régia do primeiro [Afonso Henriques], embora o imperador não tenha prescindido da condição de vassalo do primo, como havia feito, seis anos antes, em Tui.
4 – Como aqui disse, não é um erro considerar Portugal uma nação independente desde 1143 (embora não propriamente a partir de 5 de Outubro), já que Afonso Henriques, antes do encontro de Zamora, terá prestado homenagem nas mãos do cardeal, como se depreende da carta claves regni.

Trata-se, em suma, de um processo complexo e demorado (como o eram, muitas vezes, os assuntos medievais), cheio de ambiguidades entre os dois primos, netos do imperador Afonso VI. O reconhecimento oficial da independência de Portugal só se deu a 23 de Maio de 1179, data da Bula Manifestis Probatum, de Alexandre III. E aqui está ela, copiada da página da Direcção-Geral de Arquivos (para a visualizar com mais pormenor, aceda ao site):
 


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