Continuando o assunto iniciado no post anterior, tratemos agora da tão apreciada «atmosfera do romance histórico», com incidência na época medieval, pois é sobre ela que escrevo. Yourcenar (citada por Orhan Pamuk) chamou a atenção para o facto de a linguagem usada antes do século XX não ter sido gravada. E eu acrescento: nenhuma cena foi fotografada. Também pouco sabemos àcerca do quotidiano medieval e nunca viremos a saber.
O Prof. Mattoso chama-nos a atenção para o facto de aquilo sobre o que se escreve
não ser, necessariamente, aquilo que se pratica. Para uma época como a Idade Média, há que
contar com uma grande discrepância entre os registos que chegaram até
aos nossos dias e a vida real das pessoas.
Para dar um exemplo: por se explicitar, nas cantigas de amor, uma certa forma de amar, não quer dizer que assim fosse. Quer, sim, dizer como deveria ser - o modelo. Não esqueçamos que D. Dinis compôs diversas dessas cantigas, onde fazia a apologia do amor platónico, mas, na prática, apreciava mais o amor físico. E, se tivermos em conta que o rapto era um costume muito disseminado entre a nobreza (ou seja, muitos nobres, não tendo a concordância da família de uma donzela para casar com ela, não hesitavam em raptá-la), constatamos a discrepância entre a teoria e a prática.
Por outro lado, havia uma outra grande discrepância: entre o comportamento da nobreza e o do povo, que constituía mais de 95% da população. O Prof. Mattoso refere no seu livro Naquele Tempo que a virgindade feminina não era importante entre o povo, nem sequer o casamento religioso, que raramente acontecia. Não esqueçamos que os clérigos eram das poucas pessoas que sabiam ler e escrever. Se escreviam textos onde faziam a apologia de certos dogmas, é preciso notar que: primeiro, o povo não estava em condições de ler esses textos e, segundo, não havia quem os contradissesse na forma escrita, a fim de deixar fontes, para a posteridade, com outro tipo de opiniões e convicções.
Além disso, há assuntos pouco abordados, nas fontes medievais, como a homossexualidade, tanto masculina, como feminina. E havia grandes diferenças regionais nos costumes e tradições, ou seja, aquilo que era aceitável numa terra, poderia ser considerado absurdo noutra. Por isso, é um grande erro usar um único modelo para o comportamento medieval, tanto a nível de espaço, como a nível de tempo. Não esqueçamos que a expressão "Idade Média" engloba cerca de mil anos da História da Humanidade.
Claro que há certos aspetos que nos ajudam a criar uma atmosfera medieval: as pessoas aqueciam-se à lareira e usavam a luz das velas para iluminar as casas; as comunicações à distância, quando existiam, eram difíceis, nunca se sabia se uma carta chegava ao seu destino (não esquecendo que só o clero e a nobreza comunicavam por carta); a riqueza media-se pela quantidade de terras, cavalos e restante gado; dominava, nas povoações, o cheiro a dejetos, pois não havia instalações sanitárias, nem serviço de recolha de lixos, etc. Mas, na verdade, tirando estes aspetos do conhecimento geral, pouco mais podemos dizer sobre o comportamento e a atmosfera medievais. Resta-nos usar a imaginação.
Relembro a frase com que o Prof. José Mattoso inicia a biografia de D. Afonso Henriques: Não
é preciso ser historiador profissional para perceber que não se pode
traçar a biografia de uma personagem medieval sem uma grande dose de
imaginação.
Conforme tenho referido em diversos locais, confesso que a época que mais me fascina é a Idade Medieval e, depois de ler vários romances de vários escritores assim como alguns livros de História, dou por mim a pensar de como teria sido de facto a vida do povo naquela altura.
ResponderEliminarDe facto poucos conhecimentos temos do seu quotidiano, pese embora possamos, na minha opinião, retractar de uma forma próxima essa realidade, em todo o caso há coisas que me despertam a curiosidade e, uma dela, é o contacto entre seres humanos, sobretudo contacto físico.
Referes que, como não havia saneamento, o cheiro permanente seria de dejectos humanos e animais, mas eu vou mais longe, ponho-me a imaginar o cheiro que as pessoas deviam emanar dos corpos, pois a limpeza era algo que não fazia parte dos seus hábitos ou prioridades. Quando leio cenas de sexo, imagino o mau cheiro a corpos nunca lavados, dentes podres e etc.
Fascinante essa era e que me faz continuamente procurar novos romances.
Referes, e bem, a falta de higiene, embora hoje se tenda a considerar que houve épocas posteriores com menos cuidados de higiene do que a Idade Média. A ideia de que o banho fazia mal, porque a água era portadora de doenças, surgiu mais tarde e é conhecido, por exemplo, que no tempo do barroco e do rococó, em que as senhoras usavam aqueles penteados de "vários andares", passavam muito tempo (mesmo muito) sem lavarem a cabeça, para não estragarem essas "obras de arte".
ResponderEliminarPensa-se que na Idade Média ainda não se tinha tanto medo da água. Além disso, as roupas eram mais práticas e, apesar de não haver casas de banho, sempre se poderiam aliviar melhor do que as tais senhoras do rococó (séc. XVIII).
Mas, enfim, é verdade que os cuidados de higiene não se podem comparar com os de hoje. E tu falas (e bem) de dentes podres. Não esqueçamos que o tratamento dos dentes por profissionais competentes só começou no século XX. Antes disso, era mesmo uma desgraça!
Tudo isto me suscita a ideia de que, se fosse possível descrever a Idade Média exatamente como ela foi, ninguém (ou quase ninguém) queria ler livros desses. Vivemos num mundo completamente diferente. Mas note-se que as pessoas, naquele tempo, não conheciam o mundo de outra maneira, pelo que estavam longe de o achar tão mau, violento e repelente como nós o achamos.
Adorava conseguir viajar no tempo =)
ResponderEliminarSó assim se conseguiria saber como realmente era...
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