Um casal é encontrado baleado, deitado numa cama e semi-nu, numa mansão da Arrábida. Desmaiada, depois de cair das escadas, e com a arma do crime na mão, está Julieta, esposa do morto e irmã da morta (passe a expressão). A polícia conclui ter sido um crime passional e Julieta, que cegou e perdeu a memória com o trauma e a queda, passa dezasseis anos na cadeia.
Mas teria sido o caso assim tão simples? Vinte e oito anos depois, em 2003, o narrador trava conhecimento com Julieta e a filha, uma bebé à altura do crime. Julieta começa a recuperar a visão e a ter
flashbacks dos acontecimentos daquela tarde. Uma suspeita incomodativa atinge o narrador. Estava-se em agosto de 1975: Portugal à beira da guerra civil, Setúbal nas mãos da esquerda radical. A família de Julieta é considerada fascista. E o segundo suspeito do crime, em pleno processo de divórcio com a jovem assassinada, é um «capitão de Abril», um herói da revolução, cuja condenação não convém.
Estes são os interessantes pontos de partida para este romance que Domingos Amaral gere bem, construindo um enredo cheio de tensão, ao mesmo tempo que mergulha, de vez em quando, no Portugal revolucionário dos anos 70.
Porém, se o meu interesse era tanto, a ponto de muitas vezes me custar a largar o livro, houve aspetos que me incomodaram. O narrador interessa-se por aquele caso porque se apaixona pela filha casada de Julieta. E há um machismo latente em toda a sua atuação, um machismo que à primeira vista não o é, aquilo a que eu chamo um «machismo encapuzado» e que encontro amiúde, nos nossos dias. Sob a capa da aceitação dos direitos femininos, muitos homens ainda veem a mulher como um objeto sexual e nunca a chegam a pôr ao seu próprio nível. A isso se juntam
clichés e medos bastante medievais, como a crença da mulher cruel, que tanto é doce como tirana, tanto é sincera como mentirosa, enfim, um ser instável, em quem nunca se pode confiar. Neste romance, essa influência medieva atinge o cúmulo, quando o narrador se pergunta se deverá mesmo apaixonar-se por alguém que se presta a enganar o marido. Recorde-se que ele próprio é o objeto da paixão da senhora, ou seja, mesmo que seja ele o motivo para a traição dela, não lhe cai bem!!!
Não obstante o enredo empolgante, há ainda dois aspetos que não me pareceram verosímeis, como o facto de uma pessoa que permaneceu cega e presa durante tantos anos revelar tanta descontração e ousadia, em certos momentos; ou o facto de uma mãe e uma filha que só começaram a conviver uma com a outra depois de esta atingir a idade adulta, se conhecerem e aceitarem tão bem (tendo ainda em conta que a filha foi criada pela avó paterna, que desprezava a antiga nora, a «assassina»).
Também o final me desiludiu profundamente por não corresponder às expectativas criadas durante o romance e por se servir de um outro
cliché (um dos maiores do nosso tempo). Mas quanto a este assunto fico-me por aqui, pois correria o risco de revelar demais. Afinal, o interesse de um romance envolvendo um crime está precisamente na sua solução.
P.S. Um elogio para a excelente capa, da autoria de Maria Manuel Lacerda, da Oficina do Livro.