Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

11 de agosto de 2016

Que bom que era...

Através do blogue Stone Art Books, de Magda Pais, entrei em contacto com esta passagem do livro Para Onde vão os Guarda-Chuvas, de Afonso Cruz: 

«Krishna mentiu, negando que tivesse comido terra, mas Yasoda insistiu para que ele abrisse a boca. Quando espreitou lá para dentro, viu o universo inteiro, planetas a deambular, sóis a brilhar, galáxias, essas coisas.
(...)
Isso acontece com todos os pais. Não é preciso ser pai de Krishna nenhum. É assim que se vêem os filhos, dentro deles está todo o universo, todos os mundos possíveis e impossíveis». 

É uma passagem belíssima, maravilha qualquer um e mostra o grande talento deste escritor, talento, aliás, confirmado com inúmeros prémios.

Por outro lado, deixa-me um certo amargo de boca.

Não sei se cometo um sacrilégio, ao criticar palavras de tão conceituado escritor, mas…
«Isso acontece com todos os pais»? 
«Todos»?

Somos regularmente bombardeados com notícias referentes à violência exercida sobre crianças pelos próprios pais. Violência física, psicológica, abusos sexuais… Dizer que todos os pais veem o universo inteiro dentro dos filhos parece-me uma utopia, para não dizer uma “história da carochinha”, daquelas que se contam para nos pôr bem-dispostos, convencidos de que no seio das famílias apenas existe amor e carinho.

Quis o destino que deparasse com a seguinte passagem, no livro que atualmente leio:

«São sem conta e antigas as razões de não se gostar de um filho, abundam no Velho Testamento, na mitologia grega, com pouco esforço as encontramos à nossa volta».

O autor destas palavras é igualmente um grande escritor: José Rentes de Carvalho (in Meças, p. 146).

O problema, na primeira citação, está na palavra "todos". O que Afonso Cruz escreveu continua a ser lindíssimo. Mas talvez tivesse sido melhor substituir "todos" por "muitos", ou "quase todos", ou por "a maioria dos".
  
Muitos pais veem o universo inteiro dentro dos filhos - sim, é verdade. E não seria demais acrescentar que filhos desses são uns felizardos.


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