Esta obra, publicada pela primeira vez em 1908 e que descarreguei
gratuitamente no Projecto
Adamastor (caso contrário, dificilmente entraria em contacto com ela), foi
uma excelente surpresa. Não tanto pela qualidade literária, que não é fora do
comum, mas pela importância que tem na História da nossa literatura.
Infelizmente, a literatura escrita por mulheres só começou a ter mais
significado nas últimas décadas. Ana de Castro Osório viveu de 1872 a 1935, um
período de tempo em que só se costuma destacar uma escritora portuguesa: a
poetisa Florbela Espanca. E, no entanto, quão importante é conhecer o que
produziu a pena guiada por mão feminina; conhecer os dramas das mulheres numa
civilização pensada quase só para os homens!
Na novela A Feiticeira, Ana de
Castro Osório mostra-nos como a sociedade do seu tempo castigava as mulheres
alegres e sensuais. O jovem Manuel, dividido entre duas moças, a Teresinha recatada e
a Maria extrovertida, embora mais inclinado por esta última, acaba por se
decidir pela primeira, influenciado pelas intrigas da sua aldeia, que o fazem
acreditar que Maria é feiticeira. Ana de Castro Osório não condena nem uma rapariga
nem outra, limita-se a apresentá-las, porque, afinal, ambas são vítimas da
sociedade. E, enquanto Teresinha é recompensada, fazendo-se esposa do rapaz
mais cobiçado da terra, o desgosto e as intrigas destroem Maria, que se torna
precisamente naquilo em que a fazem acreditar:
«A Maria, agora feiticeira conhecida e apontada por todos, já não canta nem
vai às romarias.
Nos trabalhos do campo, as mulheres e as crianças afastam-se dela
apavoradas, e os homens lamentando-a, não têm coragem de vencer esse pavor.
Um brilho ardente de febre queima sempre os seus lindos olhos negros, que
vagueiam inquietos, num medo doentio e trágico.
Atormentada de visões, mordida de maus-olhados, meses inteiros presa de
delírios histéricos, sente-se, na verdade, transportada nas asas do vento para
sítios ermos [onde] (…) olharapos, duendes, lémures e trasgos povoam as noites
horríficas de sabbat».
Em Diário de uma Criança,
conta-se como mais uma menina extrovertida e alegre, que até se atreve a montar
a mula como os rapazes, é, a partir de certa altura, submetida a uma disciplina
de ferro, longe dos pais, que se deixam levar por quem diz que
a filha não se comporta convenientemente. A criança passa anos de amargura numa
casa em que é tiranizada.
A novela que mais me impressionou, porém, foi Sacrificada, em que Manuela, uma jovem de boa família, engravida
solteira e é banida pela própria mãe. Dá à luz uma filha num casebre abandonado
e vê-se depois obrigada a separar-se da bebé, a fim de entrar num convento,
pois a família quer anular aquele membro vergonhoso. O
sofrimento de Manuela torna-se palpável, na escrita de Ana de Castro Osório,
que nos põe em contacto com a vida das outras freiras, quase todas igualmente
sacrificadas:
«Foi Soror Cláudia a última a deixar a vida, que tão dolorida lhe fora; foi
ela, a pobre louca, quem fechou, como um ponto final simbólico, mais um período
de história feminina, tecida de sacrifícios e servidões e ilusões profundas, e
sem um fecundo e nobre e belo ideal de vida!
Ali ou na família pouco diferia, pouco mais era que esse decorrer estirado
de anos partilhados entre pequenos deveres, insignificantes trabalhos, apagadas
alegrias e supliciantes sacrifícios a que ninguém prestava atenção, tão
naturais são aos servos e aos inferiores».
Quando Manuela finalmente conhece a filha, já adulta, algo que ela pensa
ser uma consolação final para o sacrifício que levou a cabo, constata que as
duas, separadas uma da outra, não passam de desconhecidas, com feitios
totalmente opostos e inconciliáveis. Manuela apenas encontra a paz na morte.
Nesta novela, Ana de Castro Osório critica igualmente a educação dada às
meninas, com o objetivo de as deixar mal informadas, julgando-se ser esse o
melhor remédio para seguirem o caminho que se lhes destina. O contacto com a
realidade é, porém, doloroso:
«as horas que passara ali sozinha, idealizando um futuro de poesia e de
romance, como o idealizam sempre as mulheres que uma educação racional não
preparou para entrar na vida pela porta ampla e sem mentidos encantos da
realidade».
Ana de Castro Osório mostra também sensibilidade para as agruras da
infância:
«nesses tão magoados desgostos infantis que todos desprezam e são talvez os
mais violentos e os mais desesperadores de toda a vida» (em A Vinha).
«Ah, como se sofre quando se é criança, quando ninguém respeita a nossa dor
e a nossa vontade, quando decidem do nosso querer como se fôssemos títeres
animados por maquinismo industrial» (em Diário
de uma Criança).
Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco e outros escritores escreveram igualmente
sobre o sofrimento feminino. Porém, os
excertos que aqui publiquei provam, na minha opinião, que faz falta a visão feminina, a fim de conhecermos os dilemas humanos em toda a sua
amplitude. Um homem dificilmente escreveria, principalmente em 1908, sobre a «indulgência da sociedade
para com as leviandades do homem transformadas em crimes para as mulheres» (em Sacrificada).
Descubramos as escritoras que foram mantidas num quase anonimato! Há
muitas, infelizmente. E depois vêm homens, ainda no nosso século XXI, como um
tal eurodeputado polaco, dizer que a prova de que os homens são mais
inteligentes do que as mulheres é haver muitos mais homens escritores, cientistas,
inventores, etc.!
Quanta ignorância! Quanto ainda há por fazer…