Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de abril de 2019

Contos do Portugal Profundo (9)



«Ela insistiu e foi ainda mais longe na descodificação que fazia da natureza humana. Falou do medo, da impotência, da solidão, da perda... Metia-se com ele, talvez por sentir que ele fingia não ser grande adversário. E era verdade. Naquele momento estava ali sentado, com a mesma sensação de estar a assistir a uma peça de teatro ou a um filme. E como sabia que o silêncio era de ouro nos momentos em que a arte se confundia com a vida, não perturbava nem um pouco o "monólogo" de Eva...»

In "Despedidas à Francesa Num Outro Portugal", de Luís Alves Milheiro

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25 de abril de 2019

Abril no feminino?


Estava eu sem inspiração nenhuma para escrever sobre o 25 de Abril, quando deparei com um post da jornalista Helena Ferro de Gouveia no Facebook:

«Mulheres de Abril
A história da Revolução ainda é contada no masculino deixando na sombra aquelas que foram chamadas de “companheiras na sombra”. Seja Maria Barroso, a retaguarda familiar de Soares, sejam as mulheres no partido comunista, sejam escritoras, artistas, professoras, sejam as mulheres de alguns movimentos católicos, sejam as mulheres-mães-noivas-namoradas dos que combateram na guerra colonial ou dos que pensaram o derrube do regime.
Mesmo após o fim da ditadura, no período quente, elas não viveram tempos fáceis. A escritora Maria Teresa Horta recorda que ajudou a organizar uma manifestação de luta pelos direitos das mulheres. Nessa manifestação previa-se a queima de símbolos da opressão feminina: vassouras, grinaldas de noiva… Porém, centenas de homens juntaram-se em redor das mulheres e começaram a bater-lhes. "Eram murros, despiam as mulheres, tentavam violá-las", conta a escritora.
Quarenta e cinco anos depois de Abril muito mudou para as mulheres em matéria de direitos e liberdades, há ainda um longo caminho a percorrer para mudar mentalidades e falta cumprir a igualdade. E foi também para isso que se fez Abril.»

Interessa-me o papel da mulher nos vários momentos da História e comecei a ler Mulheres da Clandestinidade, de Vanessa de Almeida. O que mais me surpreendeu, até agora, foi a forma de como as mulheres comunistas eram discriminadas no próprio partido, um partido que, já durante o salazarismo, fazia da igualdade uma das suas bandeiras.

Porém, os nossos comunistas não são caso único. Vi, há tempos, um documentário na TV alemã sobre as mulheres do Kremlin e fiquei igualmente abismada como elas eram usadas, mas “escondidas”, a fim de dar protagonismo aos homens. Muito poucos saberão o nome das mulheres que estiveram ao lado de personalidades como Lenine ou Estaline, por exemplo. Ainda hoje, a Rússia não lida bem com a figura da “primeira dama” (para não falar de uma mulher à frente dos destinos da nação). Nesse programa, dizia-se que Raíssa Gorbachev foi muito criticada por constantemente surgir ao lado do marido. Putin surge sempre sozinho. É verdade que se separou da mulher, mas, mesmo quando ainda eram casados, a sua actuação era idêntica. Ou alguém se lembra da mulher de Putin?

Regressando à nossa Revolução: é sabido que o 25 de Abril abalou os costumes, porquanto o vendaval causado pelos chaimites de Salgueiro Maia coincidiu com a revisão da Concordata, por parte do Vaticano, permitindo o divórcio civil para casais unidos pela Igreja. Mesmo sendo criança (entre os oito e os doze anos, se englobarmos o Verão Quente e o período que se lhe seguiu), não fiquei indiferente à confusão de certos adultos, perante tanta liberdade. Há uns anos, escrevi as minhas memórias do 25 de Abril, que acabei por misturar com comentários da adulta que hoje sou. Ainda não consegui publicá-las em livro, mas não resisto a transcrever um pequeno excerto:

«Muitos pais de família romperam com as amarras que os haviam levado ao casamento apenas para terem sexo à disposição. Partiram à procura das Emanuelles* e das gargantas fundas*, o que aliás está longe de implicar que as tenham encontrado. Sá Carneiro acabou por personalizar esta nova ordem, ao divorciar-se para se juntar a outra mulher. É curioso constatar que foi um homem de direita, que muitos apelidavam ainda de fascista, que acabou por se tornar na personificação da nova ordem.
Porém, o desaparecer de muitas convenções sociais e de outras fachadas foi, em parte, aparente. À semelhança de outros momentos da História, as liberdades a nível individual eram pensadas sobretudo para os homens. Naqueles anos imediatos ao 25 de Abril, ainda não se aceitava bem a ideia de que a esposa, a mãe divorciada, que ficava com os filhos a seu cargo, fosse à procura de novo parceiro. Ela própria se escusava a tal comportamento. A sua atitude de protesto passava, paradoxalmente, pela defesa dos valores tradicionais».


* Expressões baseadas em títulos de filmes mais ou menos pornográficos que, na altura, se mantiveram meses (talvez até anos) em exibição nos cinemas e se transformaram em verdadeiros símbolos da nova era.

Nota: texto originalmente publicado aqui.


16 de abril de 2019

A Igreja Católica em crise



Sou assinante de um jornal católico alemão semanal, o KirchenZeitung, ou KiZ, na sua abreviatura oficial, pertencente ao bispado de Hildesheim. Nos últimos tempos, traz um ou mais artigos sobre o abuso sexual de menores dentro da Igreja Católica em quase todas as suas edições. Há quem ache que é demais e apele a que se deixe o assunto em paz. Já se admitiu que o problema existe. Não chega? Até porque, felizmente, os clérigos abusadores não são a maioria.   

Surdo a tais apelos, o KiZ insiste no assunto. E eu aplaudo. Porque é disso mesmo que os prevaricadores estão à espera: que, depois de se fazer uma balbúrdia à volta do assunto, o caso adormeça e eles possam voltar a maltratar as suas vítimas na paz do Senhor. Como sempre foi, durante séculos e séculos. Uma teia impenetrável de prevaricadores e coniventes, que abafam os crimes, que nunca castigam os criminosos, levando a Igreja de Cristo a esta situação incomportável: protecção dos criminosos, em vez de protecção das vítimas! Dizia, há tempos, uma colaboradora desse jornal: é inadmissível que um padre que o deixe de ser, a fim de se casar, seja tratado de forma mais dura pela sua Igreja, do que aqueles que abusam sexualmente de crianças!

 
Tenho lido relatos incríveis de antigas vítimas. Também há mulheres, mas a maioria parece ser homens. Em todo o caso, trata-se de pessoas que, só aparentemente, levam uma vida normal, pois não se livram de depressões, insónias, ataques de pânico e tentativas de suicídio durante toda a sua vida. Pessoas com asco de si próprias. Pessoas que tornam a recordar coisas que julgavam esquecidas, por exemplo, quando têm filhos, levando-as a cair novamente num poço escuro e frio, chegando a ficar com medo de tocar nas crianças (as suas crianças) de forma imprópria.

É duro ouvir um homem de sessenta anos dizer que se martirizou com pensamentos de pecado, ao lembrar-se de como regozijou ao saber que o padre, que abusara dele durante dois anos, ia ser transferido para outra paróquia. Na festa de despedida, toda a gente estava triste, por aquele padre tão simpático se ir embora. E ele, um miúdo de 11 ou 12 anos, estava feliz. E censurou-se por isso! É duro ler como bispos regiam autênticas redes de troca de menores. É duro ler como um padre, ganhando a confiança de uma família, a ponto de fazerem férias juntos, abusasse do miúdo, que dormia com ele, enquanto os pais dormiam no quarto ao lado, pensando que o filho não poderia estar entregue em melhores mãos.

Este último caso ilustra como a Igreja tem responsabilidades acrescidas. O Papa Francisco desiludiu no seu discurso de encerramento do encontro extraordinário de bispos em Roma, a fim de debater o assunto, há cerca de dois meses, ao relembrar que abusos sexuais a menores acontecem em todos os lugares onde adultos estão em contacto com crianças e jovens, como clubes desportivos, colónias de férias, lares, etc. Esta relativização caiu mal a muita gente, pois não se pode comparar o prestígio de um clérigo, representante de Deus na Terra, com o de um treinador de ginástica. Além disso, aconteça onde acontecer este crime, não pode ser nunca menorizado ou relativizado. Muitos se perguntam o que levou um Papa, normalmente tão acutilante e corajoso, ficar-se por discurso tão modesto. Por isso, escolhi a fotografia acima para ilustrar este post (igualmente copiada do KiZ): o Papa mostra-se abatido e encolhido, como se o peso que carrega nos ombros se tenha tornado demais para ele.

Numa altura de falta de padres e de igrejas quase vazias, escândalos deste tipo minam a confiança na instituição milenar. Não há dúvida de que a Igreja vive uma grande crise e só resolverá o problema com uma grande reforma. Alguns bispos alemães dão os primeiros passos, apesar de sofrerem a contestação de muitos dos seus pares. O novo bispo de Hildesheim, por exemplo, afirmou, numa entrevista, que a ganância do poder está inscrita no DNA da Igreja. Foi naturalmente muito contestado. Mas também apoiado. Porque ele pôs o dedo na ferida. Os abusos impunes de menores só se tornaram possíveis, porque a Igreja se transformou num clube de homens que se protegem uns aos outros, a fim de manterem o seu poder.

O bispo Heiner Wilmer não se deixa intimidar e constituiu uma comissão que deverá investigar os casos de abuso sexual no seu bispado entre os anos 1957 e 1982, o tempo de regência de um bispo muito querido e conceituado, mas que se desconfia que fazia parte de uma rede de troca de rapazinhos, algo que caiu como uma bomba entre os católicos alemães que se lembram dele, até agora, com muita saudade. Os elementos da comissão investigadora não são clérigos, nem estão particularmente relacionados com a Igreja, a fim de garantir a sua independência. E o bispo Heiner Wilmer prometeu pôr todos os arquivos à disposição dos investigadores. Este é um dos problemas, quando se trata de investigar: a retenção de informação por parte da Igreja.

Quatro pessoas fazem parte da comissão: dois psicólogos, que se encarregarão de entrevistar possíveis vítimas e outras testemunhas; um procurador-geral reformado que, durante quinze anos, presidiu a uma comissão que investigou crimes nazis em Ludwisburg, e a antiga Ministra da Justiça da Baixa Saxónia (um Land alemão) que presidirá à comissão (informações tiradas do Kiz nº 14, de 07 de Abril passado).

O facto de estar uma mulher à frente desta comissão não é por acaso. O bispo Heiner Wilmer é de opinião de que a Igreja Católica só tem a ganhar envolvendo mulheres nos seus assuntos. Mais: ele considera ser essencial a participação de mulheres na reforma que se exige, não excluindo a sua ordenação.

Foi com agrado que, apesar das críticas que lhe são feitas, constatei haver colegas seus a seguir-lhe o exemplo. No último KiZ (nº 15, de 14 de Abril), li que o bispo de Osnabrück, Franz-Joseph Bode, considera a discussão do papel da mulher na Igreja como urgente, central e inevitável. Na sua opinião, a Igreja Católica está a desmoronar e só pode recuperar a confiança, quando mulheres e homens trabalharem em conjunto. Li igualmente com muito agrado que o bispo de Limburg, Georg Bätzing, pretende igualmente constituir uma comissão, a fim de investigar os abusos sexuais no seu bispado nos últimos setenta anos. A comissão será constituída por duas pessoas não ligadas à Igreja e terão de ser um homem e uma mulher.

Não se trata, aqui, de quotas ou de calar críticas. Trata-se, acima de tudo, de enquadrar mulheres nos meandros da Igreja, quebrando o monopólio dos homens que se apoiam e protegem mutuamente. Desejo muito que isso aconteça. Não porque as mulheres sejam, em geral, melhores do que os homens, mas porque a sua presença quebrará a irmandade masculina. Além disso, a sua opinião deve ser ouvida. Os homens são apenas metade da Humanidade. Nos dias de hoje, não há razão para que sejam apenas eles a decidirem sobre assuntos que digam respeito a toda a Humanidade. Na verdade, impressiona-me que tal procedimento tenha funcionado durante milénios!

Sigo tudo isto com grande interesse, não para atacar a Igreja Católica, mas numa grande esperança de que ela se consiga renovar. A Igreja enfrenta um dos maiores desafios da sua História e urge redefinir o seu papel. Para que serve, hoje em dia? Apenas para baptizados, comunhões, casamentos e funerais? Não podemos esquecer as suas tão necessárias missões caritativas espalhadas pelo mundo. E a Igreja Católica alemã tem-se concentrado noutras causas: o apoio aos refugiados (nos últimos anos, entraram cerca de dois milhões, neste país) e a ecologia. Sim, a preservação do ambiente, aliada à causa animal, tem-se tornado, cada vez mais, uma causa da Igreja. A razão? Proteger a Criação Divina.

Seria bom que a Igreja portuguesa lhe seguisse o exemplo, fomentando o debate sobre temas polémicos e se deixasse de dogmas ultrapassados, a fim de se dedicar a causas realmente importantes.

Nota: texto publicado originalmente aqui


10 de abril de 2019

1147 - A Conquista de Lisboa




Excelente livro, escrito com muita lucidez e honestidade, à luz dos mais recentes conhecimentos históricos. Além da Conquista de Lisboa, propriamente dita, faz-nos um retrato da situação europeia da época, sob a sina das Cruzadas. Para mim, foi bom cimentar, recordar e esclarecer certos pontos.

O Cerco de Lisboa está descrito ao pormenor, com excelentes descrições dos vários grupos de cruzados, seu armamento e dos engenhos construídos e utilizados. Também nos explica o que se passava dentro das muralhas e quais os recursos bélicos dos muçulmanos.

Para quem se interesse por este tema, o livro é indispensável. Não sei se é utilizado no ensino oficial. Se não, devia!

Parabéns ao autor, Miguel Gomes Martins! Trata-se de autêntico serviço público.
Considero que o ensino da História de Portugal tem de passar por este autor.


P.S. Depois deste, peguei em De Ourique a Aljubarrota - a guerra na Idade Média, igualmente de Miguel Gomes Martins, que aliás faz parte do Plano Nacional de Leitura (com todo o mérito). Aproveito para falar dele aqui, pois, para já, li apenas os capítulos que mais me interessavam: A Batalha de Ourique, A Tomada de Santarém, A Conquista de Lisboa e A Campanha de D. Dinis em Castela. De resto, tem outros temas incontornáveis, como A Guerra Civil Entre D. Sancho II e o Conde de Bologne, A Conquista de Faro, A Batalha Do Salado, etc., sem esquecer a própria Batalha de Aljubarrota.

Este livro será até talvez mais indicado para o ensino da História de Portugal, pois os acontecimentos surgem mais resumidos. O outro será mais para quem quer aprofundar o tema, neste caso, do Cerco de Lisboa.






6 de abril de 2019

Bertolt Brecht



Foto Der Tagesspiegel


No passado dia 22 de março, o canal franco-alemão ARTE mostrou um docudrama sobre a vida do famoso dramaturgo, poeta e compositor Bertolt Brecht. O realizador, Heinrich Breloer, é especialista neste tipo de filme, onde a ficção é apoiada por imagens reais e entrevistas a pessoas que conheceram a personagem em questão. Com esta técnica, Heinrich Breloer realizara já dois docudramas que fizeram história na TV alemã: um sobre o movimento terrorista alemão RAF e outro sobre a família de Thomas Mann.

Heinrich Breloer pesquisou sobre a vida de Brecht e trabalhou no filme durante dez anos. A sua intenção era mostrar a pessoa por trás do artista, pois, como ele diz, estas personalidades, que gozam da espécie de proteção que se costuma dedicar a monumentos, foram pessoas como todos nós, com os seus defeitos e virtudes.

Bertolt Brecht intitulava-se a si próprio, desde muito jovem, de génio. Temos de admitir que tinha razão. O génio, porém, convivia lado a lado com um manipulador de mulheres. Apesar de casado (e apesar de não ter figura de galã, bem pelo contrário), Brecht teve relações íntimas com quase todas as atrizes das suas peças e outras colaboradoras da sua companhia de teatro, vendo-se obrigado a mentir compulsivamente, a fim de manter a complicada teia de casos amorosos. Também não se pode dizer que tenha sido um bom pai, pois pouco participava na vida dos filhos que teve dentro e fora do casamento. Tudo isto a sua mulher, a atriz Helene Weigel, aguentava. E mais! Ela era o verdadeiro pilar do “Berliner Ensemble”, a companhia de teatro do marido.

Bertolt Brecht foge do nazismo, primeiro, para Praga, depois, para Viena, Zurique, Paris e, em 1941, acaba por se exilar nos Estados Unidos. Vê-se, porém, obrigado a distanciar-se da perseguição aos comunistas, instituída por McCarthy, e regressa à Alemanha, estabelecendo-se em Berlim Leste.

A sua conivência com o regime ditatorial da RDA é outro ponto negativo da sua personalidade. Brecht mantinha uma conta na Suíça, possuía passaporte austríaco (o que lhe permitiria, ao contrário do que acontecia com os seus compatriotas, deixar o país se o desejasse) e silenciou sobre as torturas e a perseguição a cidadãos críticos do regime comunista, já que foi este que lhe realizou o sonho de possuir o seu próprio teatro.

A obra, porém, vale por si, independentemente do carácter do seu criador, algo que vamos aprendendo a aceitar. Ficam cada vez mais longe os tempos em que se consideravam os génios seres humanos exemplares, destituídos de qualquer mácula.