Annie Ernaux, vencedora do Nobel da Literatura em 2022, escreve sobre a sua vida, usando, porém, uma nova forma narrativa, que se poderia apelidar de "autobiografia impessoal coletiva". Nunca utiliza a primeira pessoa, oscilando entre a terceira do singular e a primeira do plural.
As memórias vão surgindo, através de fotografias. No entanto, Annie Ernaux utiliza o pronome "ela" para falar de si própria e o pronome "nós", ao descrever a vida e os acontecimentos. Partindo de uma menina, que se torna adolescente, mulher jovem, mulher madura, mulher idosa, Annie Ernaux conta, não só a sua história, como a da França e do resto do mundo (vista de França), desde meados dos anos 1940 a 2006: o período pós Guerra Mundial, o liceu, a universidade, a escrita, um casamento que se adivinha efémero, de Gaulle, 1968, a suposta emancipação da mulher, Mitterand, a globalização, o envelhecer...
Annie Ernaux liga a vida pessoal, do dia-a-dia, com os grandes acontecimentos políticos e históricos. Porque é disso mesmo que são feitas todas as nossas vidas. E fá-lo, claro, sob a perspetiva feminina. O melhor é mesmo deixar falar o livro:
"As férias grandes serão uma longa travessia de tédio, de atividades minúsculas para ocupar os dias: (...) ir à cidade comprar champô e um livro da coleção Petit Classique Larousse, passando, com os olhos no chão, em frente ao café, onde os rapazes jogam flipper." (p. 46)
"Tínhamos a certeza de que com a pílula a vida ia dar muitas voltas, seríamos de tal modo livres em relação ao nosso corpo que era assustador. Livres como um homem." (p. 72)
"A religião católica, sem qualquer cerimónia, desaparecera do contexto das nossas vidas (...) A Igreja já não aterrorizava o imaginário dos adolescentes na puberdade, já não regulamentava as relações sexuais e o ventre das mulheres saíra da sua zona de influência. Ao perder o seu principal campo de ação - o sexo -, a Igreja perdera tudo." (p. 124)
"Os filhos, sobretudo os rapazes, dificilmente largavam o ninho familiar, o frigorífico cheio, a roupa lavada, o ruído de fundo das coisas da infância. Faziam amor, com todo o à-vontade, no quarto ao lado do nosso. Insatalavam-se numa juventude longa e duradoura, o mundo parecia não estar à sua espera." (p. 140)
"Para toda a gente, inclusive para os migrantes clandestinos amontoados num bote em direção à costa espanhola, a liberdade tinha por rosto um centro comercial, hipermercados a desabar sob o peso da abundância. Parecia natural que os produtos chegassem do mundo inteiro, circulassem livremente, e que os homens fossem reprimidos nas fronteiras." (p. 177)
Um grande livro. Não deixem de ler!