Em todos os momentos da História, seja na Antiguidade, na Idade Média, ou no nosso tempo, são as mesmas paixões e os mesmos desígnios que inspiram os humanos. Entender a História é entender melhor a natureza humana.

29 de março de 2011

A Nossa Criança Interior

Tentei não fazer nada na minha vida que envergonhasse a criança que fui.

Quando me for deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei de mão dada, com essa criança que fui.

Recebi, há tempos, um email com citações de José Saramago, entre elas, estas duas frases. Sensibilizaram-me muito, pois vão de encontro ao conteúdo de dois livros que modificaram bastante a minha vida e que, infelizmente, não estão traduzidos em português.

Um deles, da psicóloga americana Erika C. Chopich, tem, como título original, Healing Your Aloneness, mas eu, por acaso, gosto mais do título alemão: Aussöhnung mit dem inneren Kind, que quer dizer algo como: Fazer as Pazes com a Criança Interior. Porque é disso mesmo que ele trata.




Erika C. Chopich desafia-nos a descobrirmos a nossa Criança Interior. Através de técnicas interessantes, ela ensina-nos a falar com a criança que nós fomos e a fazer por ela aquilo que ninguém fez, fosse por ignorância, pelas circunstâncias da vida, etc. Não está em causa culpar os pais pelos nossos falhanços ou problemas. Felizmente, a maior parte dos pais fez e faz o melhor que sabe e pode. O que está em causa é corrigir erros que acabam por nos marcar durante toda a vida. O objectivo não é atirar as culpas da nossa infelicidade ao que sofremos na infância, mas, sim, descobrir o que correu mal e tentar repará-lo.

Dou um exemplo:
Façamos uma lista dos nossos defeitos. A lista que se segue serve apenas para dar ideias. Lembrem-se de que farão a lista sozinhos, por isso, sejam sinceros e digam o que pensam de vós próprios (os homens escrevem os adjectivos/substantivos no masculino, claro):

- sou tímida
- sou medrosa
- sou feia
- não sou suficientemente inteligente
- sou desajeitada
- não sou criativa
- sou desinteressante
- sou egoísta
- sou distraída
- sou triste
- tendo a depressões
- sou chata
- sou preguiçosa, etc., etc.

Agora, peguemos numa fotografia nossa dos tempos de criança. Olhemos para essa criança, respiremos fundo e perguntemo-nos o que vemos, usando a nossa lista de defeitos. Vemos uma criança feia, medrosa, desajeitada, chata, sem criatividade, triste, egoísta, desinteressante, preguiçosa, etc.? Vai constatar que responde "não" a quase todas as perguntas, talvez a todas!



Daqui


Há quem diga que se trata de um exercício inofensivo, que não leva a lado nenhum. Mas, se assim é, porque se revela tão doloroso para muitos de nós? Aliás, quanto mais doloroso se revelar, mais necessidade há de o fazer, porque descobrimos assim o nosso verdadeiro ser, aquilo que verdadeiramente somos, ou éramos, antes de interiorizarmos muitas das coisas que nos disseram e que são falsas.

Depois de saber a verdade sobre si, pegue, de vez em quando, na fotografia (principalmente, quando se sentir triste, ou em baixo, ou tenha uma tarefa difícil pela frente) e diga à criança aquilo que ela realmente é: tu és bonita, tu és alegre, criativa, enérgica, curiosa, meiga, corajosa, etc., etc. E também ajuda muito dizer: eu adoro-te, ou eu amo-te! Para usar uma expressão alemã: funciona como um bálsamo para a alma!

Quando me for deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei de mão dada, com essa criança que fui.

Ao ler esta frase, fiquei com a impressão de que Saramago teve, de uma maneira ou de outra, contacto com este tipo de terapia/teoria. E, com esta convicção, a meu ver, ele conseguiu diminuir o medo que sentia da morte. Porque, estando em sintonia com a "nossa criança", nunca nos sentimos sozinhos. Erika C. Chopich aconselha a estabelecer uma relação íntima com a Criança Interior, se possível, dialogar com ela todos os dias, perguntar-lhe, por exemplo, se está triste, o que lhe apetece fazer, ou, mesmo, se gosta das pessoas com quem lidamos. As respostas podem ser surpreendentes. E ajudam-nos a tomar as decisões certas, o que me leva à outra frase de Saramago:

Tentei não fazer nada na minha vida que envergonhasse a criança que fui.

Termino este post com uma frase do outro livro, Das innere Kind umarmen (Abraçar a Criança Interior), da alemã Kim-Anne Jannes:

Devemos tratar de nós próprios como, em criança, desejaríamos que os nossos pais nos tratassem.

2 comentários:

JoZé disse...

É uma pena que este nosso mundo esteja tão cheio de gente sem o mínimo respeito pelas crianças que foram. Pudessem eles voltar atrás e corariam de vergonha por aquilo em que se transformaram!

Cristina Torrão disse...

É verdade, JoZe. A criança que fomos representa aquilo que somos, no nosso verdadeiro íntimo. Infelizmente, alguns de nós estão muito afastados desse "núcleo", outros, nem tanto, mantêm uma ligação. O reencontro pode ser doloroso, mas é sempre uma surpresa e ajuda-nos a transformarmo-nos em pessoas melhores e, até, mais felizes. Tenho algo mais a dizer sobre este tema, brevemente :)