Vejo-me por terras transmontanas, sempre que venho a Portugal, pois o meu pai decidiu, há cerca de dez anos, regressar às origens. A estadia numa cidade transmontana é agradável, principalmente no Verão, longe das confusões da zona costeira. Claro que também gostamos de ir às grandes cidades e às praias, mas, depois de uns dias, é bom regressar ao sossego das terras para cá do Marão.
Há, no entanto, algo que muito me incomoda por estas paragens, de paisagens tão bonitas. Embora se registem melhorias nos últimos tempos, as gentes continuam a tratar os seus animais, nomeadamente, os cães, de maneira indigna. Custa-me muito deitar-me, à noite, e ouvir o uivo triste de um cão, que se sente sozinho e/ou desprezado. Ou andar pela rua e ouvir os latidos ou o ladrar daqueles, cujo mundo se resume aos quatro muros do quintal onde vivem, presos por uma corrente. Muitas vezes, nem os consigo ver, pois alguns desses quintais encontram-se a um nível superior ao da rua e cercados dos ditos muros.
Regressava eu, certa vez, a casa, depois de uma volta pelo centro da cidade. Ao passar por uma zona dessas, em que os oiço, sem os ver, deparei com quatro ou cinco cães a correr em sentido contrário ao meu. Nada de anormal, o portão de alguns quintais está aberto e certos animais podem entrar e sair a seu bel-prazer. São estes os mais felizes. Estão sujeitos a serem atropelados, mas, pelo menos, têm a sua liberdade. E os atropelos são raros, os cães são muito inteligentes. Eu e o Horst já nos apercebemos que aprendem a lidar com o trânsito!
Dessa vez, porém, um deles chamou-me a atenção. Era um daqueles cães pequenos, sem raça definida, de pêlo castanho, como tantos outros. Mas sobressaía do meio do grupo porque arrastava consigo uma corrente, presa à sua coleira. No outro extremo, uma espécie de cavilha, que se havia soltado. O meu primeiro impulso foi agarrar na corrente e tentar encontrar a casa a que pertencia, antes que lhe acontecesse alguma coisa. Não tinha o treino dos outros, podia ser atropelado na primeira esquina, ou ficar preso nalgum sítio perigoso.
Como o observei particularmente, ele dirigiu-me o seu olhar. Um olhar que nunca esquecerei e que me paralisou, deixou-me sem acção. A felicidade e o deslumbramento que vi nos seus olhos bem abertos custavam a suportar. Naquele momento, tive a certeza de que saía para a rua pela primeira vez, foi como se me tivesse dito: "Descobri o mundo que existe para além dos muros do meu quintal! Tanto espaço para correr, tanta coisa para ver! Que grande é o mundo! Quero ver tudo! Tudo!"
O momento passou. Fiquei a olhar como ele corria atrás dos outros, com a corrente de arrasto. E pensei: "Vai, cãozinho, aproveita este instante de liberdade, independentemente da maneira como acabe. Só espero que não seja muito curto".
Nesses escassos momentos de liberdade ou de felicidade somos todos iguais...
ResponderEliminarFizeste bem, pois mais vale um momento livre do que uma vida prisioneiro. Acho que já li uma coisa parecida a este pensamento...
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