Conquista de Santarém |
O que a imagem não explicita é que o ataque a Santarém se deu pela calada da noite.
Escolhendo um momento propício, em que o vigia se encontrava mais longe, o moçárabe esgueirou-se com três companheiros até à muralha, enquanto o resto dos homens se mantinha escondido. Os quatro iam munidos de uma escada de pau, tosca e leve. Ao atingirem o sopé do muro, de cerca de quarenta pés de altura, quedaram-se silenciosos, pois já ouviam os passos do vigia fazer o caminho de volta. Esperaram até que ele estivesse mesmo por cima deles, o local onde o mouro, depois de um curto compasso de espera, tornava a dar meia-volta.
Assim que o sentiram distanciar-se, encostaram, com muito cuidado, a escada às muralhas. Com a sua adaga segura entre os dentes, Mem Ramires começou a trepar, silencioso e ágil, sem deixar de prestar atenção ao som dos passos do mouro. Quando ia a meio da escada, sentiu a sentinela parar. Logo se imobilizou. Bem sabia que o outro ainda não tinha dado os seus trinta passos, devia ter sentido alguma coisa. Assim ficou o moçárabe paralisado, de coração aos saltos, à semelhança do companheiro que subia atrás dele, alguns degraus mais abaixo. Os dois nem se atreviam a respirar, durante aquilo que se lhes assomava como uma eternidade. Finalmente, o vigia encetou a sua caminhada, sem mudar de direcção, pois os passos continuaram a distanciar-se.
A uns dez palmos de distância da ameia, Mem Ramires tornou a parar. O mouro já vinha de regresso, o que, aliás, fazia parte dos seus cálculos. Mas este era um momento decisivo. Os atacantes quedaram-se, mais uma vez, imobilizados e de respiração presa, rezando para que o vigia não desse por eles.
O mouro chegou ao local de partida, onde fazia o seu compasso de espera. Mem Ramires tinha a impressão de que ele, desta vez, se demorava mais tempo. Estavam bem perto um do outro: o mouro sobre o adarve, na ameia, a mesma que se encontrava à distância de dez palmos da cabeça do moçárabe, que o ouvia respirar, enquanto ele próprio não se atrevia a fazer uso dos seus pulmões. Além disso, sentia a escada de pau leve e elástico a bambolear, com o peso de dois homens sobre ela. Era o máximo que a construção aguentava. Mem Ramires sabia, por isso, que os restantes dois companheiros ainda se encontravam no chão. Se a escada quebrasse, ou o mouro desse por eles, estava a empresa perdida e D. Afonso não conquistaria tão cedo a cidade de Santarém. Mais do que a própria morte, Mem Ramires receava desiludir el-rei de Portugal.
O mouro reatou finalmente a sua marcha e o moçárabe, apesar de aliviado, não se esqueceu de expirar o ar devagar, antes de espreitar pela ameia. À sua direita, na direcção da porta de Atamarma, viu as costas do vigia, que se afastava. À sua esquerda, não descortinou vivalma. Enfiou-se pela ameia, aproximou-se silencioso da sentinela, agarrou-lhe no queixo por detrás e, num gesto preciso e rápido, cortou-lhe a goela com a adaga. O grito do mouro abafou-se num gorgolejar e Mem Ramires sentiu o sangue quente esguichar-se-lhe para as mãos.
Todos os quatro homens conseguem saltar para o adarve, neutralizar as sentinelas e abrir a Porta de Atamarma a el-rei e aos seus cavaleiros, antes de a cidade acordar por completo.
O chão começou a tremer debaixo de centenas de cavaleiros a galope. Aos ouvidos de Mem Ramires, este estrondo assomava-se mais doce do que as cantigas dos jograis. A patrulha mandada pelo alcaide, que já estava prestes a alcançá-los, tentou recuar, mas acabou esmagada debaixo das ferraduras dos cavaleiros vilãos.
Afonso e os seus homens foram-se infiltrando pelas ruelas da cidade, chacinando as sentinelas que se atreviam a fazer-lhes frente e avançando sem grande resistência até à alcáçova, onde o alcaide, vendo-se sem outra hipótese, se tinha barricado, juntamente com o grosso da sua guarnição. Os portugueses puseram cerco à muralha interior, que os mouros por sobre o adarve defendiam, disparando as suas bestas, cujos virotes trespassavam as cotas de malha. Mas também os cavaleiros vilãos usavam os seus arcos, permitindo que companheiros seus se aproximassem das portas, a fim de as desfazerem com os machados.
Finalmente, uma porta cedeu. O primeiro português penetrou na fortaleza montado sobre o seu cavalo, manejando o machado como um possesso para ambos os lados, atacando os mouros que encontrava pela frente e abrindo caminho aos seus companheiros. Alguns muçulmanos lograram espetar os seus sabres na barriga dos animais, obrigando os seus ocupantes a desmontar e a lutar corpo a corpo.
Os cavalos atacados esvaíam-se em sangue, dando gritos lancinantes. Também guerreiros feridos davam expressão à sua agonia. Mas os portugueses conseguiam levar a melhor naquela chacina. Aos poucos, iam penetrando na alcáçova, até abrir caminho ao próprio rei, ao Espadeiro e ao Cativo. Alguns avançaram até ao portão que dava acesso ao exterior, que abriram, permitindo a entrada do Sousão e dos seus homens.
Os mouros não resistiram por muito mais tempo. Os guerreiros de Afonso tomaram conta de todos os edifícios e compartimentos da fortaleza, matando os homens e violando as mulheres por sobre o sangue que manchava os tapetes e as almofadas das luxuosas alcovas.
Quando o Domingo, dia 15 de Março de 1147, amanheceu, já os gritos de sofrimento e agonia tinham cessado. E era o estandarte do rei português, com os seus escudetes azuis em forma de cruz, que a brisa sacudia no cimo da torre de menagem da alcáçova de Santarém.
Estava aberto o caminho para a conquista de Lisboa.
É de grande realismo a tua descrição, Cristina. Empolgante, coloca-nos a escalar a muralha juntamente a Mem Ramires. Afinal, os desejos de conquista, e defesa da nacionalidade que nos identifica ainda nos circula no sangue. Muitas vezes nos sentimos ainda, os Lusitanos indomáveis, a gesta de um povo que não se limitou ao seu canto e a quem a sede de desvendar o mundo, o tornou único no mundo.
ResponderEliminarSerá que alguma vez os Germanos entenderão esta génese, Cristina?
Nie!
Eles só conseguem perceber de batalhas com tanques de guerra, aviões, metralhadoras, etc. É preciso explicar-lhes que as principais armas lusitanas, encontram-se na alma, na coragem, na valentia... no destemor!
;))
Obrigada, Bartolomeu, pelos teus elogios e a tua interessante opinião sobre este tema :)
ResponderEliminarMuito bom, obrigado pelo texto. Eu lia fácil um livro escrito pela senhora com histórias iguais a essa e mais desenvolvidas e detalhadas.
ResponderEliminarMuito bom, obrigado pelo texto. Eu lia fácil um livro escrito pela senhora com essas histórias de um jeito mais desenvolvido.
ResponderEliminarObrigada, Jacaré do CV.
ResponderEliminarMas não entendi bem o conteúdo total do seu comentário.